Tuesday, 26 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

José Queirós

“A deon­to­lo­gia jor­na­lís­tica não é uma ciên­cia exacta. Por trás de uma deci­são edi­to­rial con­tro­versa esconde-se fre­quen­te­mente um con­flito entre valo­res con­tra­di­tó­rios, para o qual as nor­mas da ética pro­fis­si­o­nal não são uma bús­sola à prova de erro. Pon­de­rar os valo­res em con­fronto numa situ­a­ção desse tipo e deci­dir quais devem pre­va­le­cer é a prova mais difí­cil a que estão sujei­tos os res­pon­sá­veis de um órgão de comu­ni­ca­ção. É na his­tó­ria des­sas esco­lhas que prin­ci­pal­mente se funda a repu­ta­ção de um jor­nal de qua­li­dade e referência.

Tendo esta rea­li­dade bem pre­sente, devo come­çar por reco­nhe­cer que não tenho uma res­posta segura para a ques­tão que hoje me ocupa: a ava­li­a­ção da crí­tica vee­mente de um lei­tor à publi­ca­ção da repor­ta­gem inti­tu­lada ‘Nin­guém fechou Ema­nuel em casa, mas há 18 anos que o seu mundo está entre qua­tro pare­des’, publi­cada no pas­sado dia 22 de Julho na revista 2, que inte­gra este diá­rio aos domin­gos. Vejo nesse facto mais uma razão para ana­li­sar o caso, pro­cu­rando alar­gar o debate que suscita.

Recorde-se o que se pas­sou. Órgãos de infor­ma­ção menos escru­pu­lo­sos lan­ça­ram a público, há pouco mais de um mês, a his­tó­ria de um cida­dão de 38 anos que, segundo se lia nas notí­cias publi­ca­das, não seria visto há quase duas déca­das e pode­ria estar seques­trado na casa onde sem­pre vivera com a mãe, ou ter mesmo fale­cido há tempo inde­ter­mi­nado, per­ma­ne­cendo o seu corpo na refe­rida habi­ta­ção, como se espe­cu­lou em peças jor­na­lís­ti­cas ajus­ta­das às expec­ta­ti­vas mór­bi­das do mer­can­ti­lismo sensacionalista.

Pas­sa­ram alguns dias — que foram dias de roma­ria de repór­te­res de texto e de ima­gem à porta do cida­dão em causa, com intensa medi­a­ti­za­ção das sus­pei­tas lan­ça­das no espaço público e com­pre­en­sí­vel alarme entre os con­ter­râ­neos — até que uma dili­gên­cia do Minis­té­rio Público per­mi­tiu con­cluir que o pro­ta­go­nista de tão dra­má­tica cam­pa­nha desin­for­ma­tiva se encon­trava vivo e que era por sua livre von­tade que não se dava a ver fora de casa. Como a sua mãe expli­cara, desde o iní­cio, a quem lhe ron­dara a porta.

O PÚBLICO, que não par­ti­ci­para na his­te­ria espe­cu­la­tiva sobre o caso, noti­ciou de forma sóbria, no dia seguinte, o resul­tado da inter­ven­ção judi­cial. E vol­tou ao tema duas sema­nas depois nas pági­nas da revista 2, num registo de repor­ta­gem inves­ti­ga­tiva, tendo por objec­tivo — nas pala­vras do direc­tor adjunto Nuno Pacheco — abordá-lo ‘de forma humana, o mais pró­ximo pos­sí­vel do pro­ta­go­nista cen­tral da his­tó­ria’, para ‘devol­ver ao caso a dig­ni­dade que ele mere­cia, afastando-o do campo da sub­jec­ti­vi­dade e da espe­cu­la­ção’. Pretendia-se ainda, como explica a edi­tora da revista Paula Bar­rei­ros, ‘fazer che­gar ao lei­tor um retrato o mais fiel pos­sí­vel (…) de alguém que há quase vinte anos não é visto soci­al­mente’, até por se jul­gar que ‘isso pode­ria ser útil para outras pes­soas em situ­a­ções semelhantes’.

Parece-me que essas inten­ções foram no essen­cial bem suce­di­das, ape­sar de a autora da repor­ta­gem— a jor­na­lista Sara Dias Oli­veira — não ter con­se­guido, con­tra­ri­a­mente à sua expec­ta­tiva ini­cial e por indis­po­ni­bi­li­dade dos pró­prios, reco­lher os depoi­men­tos de Ema­nuel Cas­tro (assim se chama, como foi ampla­mente noti­ci­ado, o cida­dão cujo estilo de vida alvo­ro­çou jor­nais e tele­vi­sões), bem como das suas mãe e irmã. Ouviu e citou, no entanto, entre mui­tas outras, várias pes­soas pró­xi­mas da famí­lia, incluindo um vizi­nho que man­tém con­tacto directo com o cida­dão que não gosta de sair de casa e afirma que este se man­tém ligado ao mundo atra­vés da tele­vi­são, Inter­net, livros e jor­nais (‘há mui­tos anos que não dis­pensa a lei­tura sema­nal do Expresso’).

Como poderá cons­ta­tar quem tenha lido ou venha a ler essa repor­ta­gem da revista do PÚBLICO, o texto assi­nado por Sara Dias Oli­veira é uma peça escla­re­ce­dora e equi­li­brada, que recons­ti­tui de forma coe­rente, con­tex­tu­a­li­zada e com abun­dân­cia de por­me­no­res a his­tó­ria de Ema­nuel Cas­tro. Reco­lhe opi­niões con­tras­ta­das sobre as cau­sas e influên­cias que expli­ca­rão uma situ­a­ção invul­gar que terá per­tur­bado mui­tos lei­to­res, e trans­creve depoi­men­tos de vários espe­ci­a­lis­tas con­fron­ta­dos com o que neste caso possa per­ten­cer ao foro psiquiátrico.

Ape­sar do seu mérito jor­na­lís­tico, a repor­ta­gem foi viva­mente cri­ti­cada pelo lei­tor Fer­nando Aze­vedo, que começa por con­si­de­rar uma mani­fes­ta­ção de ‘igno­rân­cia’ o facto de nela não se refe­rir que ‘existe uma doença cha­mada ago­ra­fo­bia, cujos sin­to­mas são exac­ta­mente os des­cri­tos para o caso refe­rido’. A isto res­pon­dem os res­pon­sá­veis edi­to­ri­ais do PÚBLICO (e eu con­cordo) que não cabe­ria ao jor­nal avan­çar um diag­nós­tico, que pode­ria ter sido suge­rido, e não foi, pelos espe­ci­a­lis­tas ouvidos.

Não é esse, no entanto, o ponto cen­tral da crí­tica do lei­tor, que se afirma ‘pro­fun­da­mente revol­tado’ pelo que viu como ‘uma falta de res­peito pelos mais fun­da­men­tais direi­tos huma­nos da pes­soa visada na peça’. Chocou-o o facto de não ter encon­trado no texto da revista ‘a auto­ri­za­ção expressa do Ema­nuel para que sejam reve­la­dos ao mundo os por­me­no­res da sua his­tó­ria clí­nica’, e ques­ti­ona com que direito se reve­lam essas infor­ma­ções sem o ‘con­sen­ti­mento’ do pró­prio, para mais quando ‘existe ainda bas­tante pre­con­ceito e igno­rân­cia sobre as doen­ças psi­quiá­tri­cas’. Clas­si­fi­cando a repor­ta­gem como ‘ desu­mana’, per­gunta ‘qual a jus­ti­fi­ca­ção’ para a sua publi­ca­ção ‘num jor­nal de referência’.

As infor­ma­ções em causa, explica a autora do tra­ba­lho, foram sobre­tudo reti­ra­das do pro­cesso judi­cial a que o caso deu lugar e con­fir­ma­das por pes­soas pró­xi­mas de Ema­nuel Cas­tro. Sali­enta que foram uti­li­za­das, ‘não para des­res­pei­tar a [sua] pri­va­ci­dade, mas para escla­re­cer uma his­tó­ria que (…) tinha pon­tas sol­tas por expli­car’ e que agi­tara a ‘comu­ni­dade local’, onde ‘havia muita gente com a ideia de que a mãe o tinha fechado em casa’. Sara Dias Oli­veira con­si­dera, aliás, que a dis­po­ni­bi­li­dade de pes­soas pró­xi­mas da famí­lia para ‘trans­mi­tir dados mais pes­so­ais’ pode ser inter­pre­tada como ‘uma von­tade de escla­re­cer’ infor­ma­ções detur­pa­das que tinham vindo a público. E acres­centa que não lhe che­gou, atra­vés des­sas fon­tes, qual­quer sinal ‘de que a famí­lia tivesse rea­gido nega­ti­va­mente à divul­ga­ção dos dados’.

A jor­na­lista defende por isso que, ape­sar de não ter obtido uma auto­ri­za­ção for­mal do pro­ta­go­nista do caso para divul­gar ele­men­tos da sua vida pes­soal, se jus­ti­fi­cou avan­çar com a sua publi­ca­ção, num ‘tra­ba­lho sério’ para ‘apro­fun­dar o tema’, face à ‘rele­vân­cia’ de um caso ‘que estava a ser ampla­mente dis­cu­tido, mas a que fal­ta­vam por­me­no­res essenciais’.

Há aqui duas ques­tões a dis­cu­tir. A pri­meira é a de saber se o PÚBLICO deve­ria ou não ter noti­ci­ado e apro­fun­dado esta his­tó­ria. A imprensa de qua­li­dade é fre­quen­te­mente con­fron­tada com um pro­blema clás­sico no que res­peita à divul­ga­ção de infor­ma­ções que repre­sen­tam uma inva­são inde­vida da vida pri­vada, nome­a­da­mente de figu­ras públi­cas. Se recusa fazê-lo, mas vê esses dados (ver­da­dei­ros ou fal­sos, não importa) serem lan­ça­dos com estrondo no espaço público pelos media de voca­ção tablóide, passa a ter de esco­lher entre man­ter o silên­cio ini­cial ou quebrá-lo face a uma medi­a­ti­za­ção que pode ela mesma, por vezes, con­fe­rir inte­resse público a um tema que à par­tida não o tinha.

Este é um ter­reno escor­re­ga­dio, onde con­virá evi­tar cedên­cias fáceis, mas em que deve­rão pre­va­le­cer as noções de ser­viço público e de escla­re­ci­mento dos fac­tos. Neste caso, julgo que o PÚBLICO fez bem em noti­ciar a dili­gên­cia judi­cial que per­mi­tiu repor a ver­dade face a sus­pei­tas de crime lan­ça­das levi­a­na­mente por outros órgãos de comu­ni­ca­ção, que fez bem em que­rer apro­fun­dar o tema (pelas razões invo­ca­das pela jor­na­lista e pelos res­pon­sá­veis edi­to­ri­ais) e que o fez de forma séria e esclarecedora.

Resta saber se, para o con­se­guir, tinha o direito de reve­lar, sem auto­ri­za­ção espe­cí­fica do pró­prio, dados da vida pri­vada e da his­tó­ria clí­nica de um cida­dão cujo nome e local de habi­ta­ção são reve­la­dos. Não é por acaso que se lê no esta­tuto edi­to­rial do PÚBLICO que este jor­nal ‘reco­nhece como seu único limite o espaço pri­vado dos cida­dãos’ e que as suas nor­mas con­si­de­ram ‘vio­la­ção da pri­va­ci­dade’ a ‘divul­ga­ção de fac­tos da vida pes­soal’ e a ‘explo­ra­ção de (…) dra­mas de natu­reza pes­soal ou fami­liar’, e esta­be­le­cem como regra que ‘o direito à pri­va­ci­dade sobre­leva o direito e o dever de infor­mar’. Nem é por acaso que no Livro de Estilo do jor­nal se afirma que ‘a reve­la­ção do diag­nós­tico de saúde’ de uma pes­soa per­tence ‘exclu­si­va­mente’ a essa pes­soa ou, ‘na sua impos­si­bi­li­dade’, aos ‘seus familiares’.

Estes são, de facto, valo­res fun­da­men­tais. É por isso que, mesmo reco­nhe­cendo a legi­ti­mi­dade de uma pon­de­ra­ção diversa do dilema ético aqui exposto, me inclino a con­cor­dar com a crí­tica do lei­tor Fer­nando Aze­vedo. A auto­ri­za­ção para divul­gar dados de natu­reza pri­vada deve­ria ter sido pedida. A não ser obtida, a repor­ta­gem deve­ria ter sido refor­mu­lada ou, em alter­na­tiva, a sua publi­ca­ção deve­ria aguar­dar por novas dili­gên­cias junto de Ema­nuel Cas­tro e da sua famí­lia. Mesmo sacri­fi­cando — é justo sublinhá-lo — um opor­tuno tra­ba­lho jor­na­lís­tico e parte do resul­tado de uma pro­cura esfor­çada da verdade.”