Tuesday, 26 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Regina Lima

“Antigamente, ser mensageiro para entregar recados aos adversários numa guerra era uma ocupação perigosa. Quando o portador do recado apresentava uma proposta de trégua ou rendição inaceitável ao outro lado, este às vezes dava a resposta matando o mensageiro, um claro sinal da rejeição do acordo proposto.

Os tempos mudaram e os meios de comunicação, também. Mas a ocupação de mensageiro de recados ainda oferece seus perigos. Nas negociações recentes entre representantes do governo federal e dos sindicatos para por fim às greves de várias categorias de servidores públicos federais, a imprensa tem sido utilizada pelos dois lados para passar seus recados. Nada de anormal nisso, pois os dois também têm consciência da importância de mobilizar suas próprias fileiras e a opinião pública ao seu favor. Para o mensageiro, porém, embora não corra o risco mortal de antigamente, as batalhas travadas por meio da imprensa trazem o perigo de danos éticos, ainda mais quando a interferência é flagrada.

Uma das armas não letais de que o Estado pode dispor para controlar a imprensa é a censura e foi precisamente um suposto ato de censura praticado por representantes do governo federal que levou dois leitores a reclamarem das alterações feitas numa matéria publicada pela Agência Brasil no dia 02 de agosto.

A matéria, que tinha dois secretários do Ministério de Educação (MEC) como fontes, abordou a posição do MEC sobre as perspectivas para as negociações com os sindicatos dos professores das universidades e institutos técnicos federais. Na véspera (01/08) o acordo proposto pelo MEC tinha sido aceito por um dos sindicatos que representa aproximadamente 15% da categoria dos docentes.

Na versão original o título da matéria era: ‘MEC diz não ter plano B em caso de continuidade da greve dos professores’ e o texto incluía a seguinte paráfrase de uma afirmação atribuída às fontes: ‘Amaro Lins [o secretário de Educação Superior] e o secretário de Educação Profissional e Tecnológica do MEC, Marco Antônio de Oliveira, disseram que o governo não tem um ‘plano B’ na hipótese de os docentes continuarem em greve após a assinatura do acordo com o Proifes, e que, neste caso, caberia ao Ministério do Planejamento e à AGU (Advocacia-Geral da União) decidir que medidas tomar’.

Uma hora depois da publicação a matéria foi alterada. O título foi substituído por: ‘MEC acredita no fim da greve nas universidades e diz que aguarda desdobramentos dos fatos’, a afirmação citada acima foi eliminada, outras afirmações foram acrescentadas e uma nota foi colocada no final da matéria acusando a correção, em decorrência a um erro de interpretação, sem mais detalhes. No dia seguinte (03/08) houve outra alteração, reintroduzindo informações que tinham sido eliminadas na primeira revisão sobre o autor de uma das falas e uma errata foi publicada apontando as alterações.

Tudo indica que a matéria foi uma entrevista exclusiva dada à Agência Brasil. As mesmas informações não foram relatadas por outros jornalistas e só aparecem em outros sites que reproduziram a reportagem da ABr. Portanto, faltam fontes independentes para checar as explicações sobre as alterações. Mesmo assim, apesar de qualquer erro de interpretação que possa ter acontecido na reportagem – a atribuição incorreta de uma fala, por exemplo – está patente que as alterações feitas na matéria refletem mais uma mudança de ênfase do que a correção de informações erradas. Isto foi claramente a intenção da mudança no título – uma área onde os editores da ABr são geralmente muito ciosos da sua liberdade de expressão – e das falas acrescentadas nas revisões. Quanto à afirmação parafraseada que foi eliminada do texto, observamos apenas que, mesmo que houvesse algum erro na atribuição, é difícil conceber que a referência ao Ministério de Planejamento e à AGU tenha aparecido do nada quando a matéria foi redigida.

No mesmo dia da publicação das duas primeiras versões, as alterações chamaram a atenção dos responsáveis pelo site do UOL Educação, que colocaram um post com o seguinte título: ‘Após dizer que MEC não tem plano B para greve, agência muda texto e omite informação’. O post identificou a ABr como ‘a agência de notícias do governo federal’ e afirmou que: ‘De acordo com a Agência Brasil, a mudança foi feita após questionamento da assessoria do ministério’ (uma informação que não aparecia nas explicações publicadas pela ABr).

O leitor Wákila Mesquita, do Distrito Federal, viu o post e mandou uma reclamação à Ouvidoria no mesmo dia (02/08): ‘De acordo com o site UOL, no link abaixo, a Agência Brasil teria mudado uma notícia por determinação do MEC. O governo pode interferir nos veículos da EBC, não há autonomia? Esses veículos são do governo ou são públicos’? Três dias depois outro leitor, Georges Bourdoukan Junior, de Santos/SP, enviou sua crítica, comentando, entre outras coisas: ‘Esta agência…se sujeita a remover uma nota passada, em um típico caso de censura’.

A Diretoria de Jornalismo respondeu aos leitores, reconhecendo o envolvimento do MEC – e assim confirmando a informação divulgada no site do UOL – porém defendendo esta participação como legítima: ‘Agradecemos a sua participação e reafirmamos que a Agência Brasil é uma agência pública notícias, conforme missão da Empresa Brasil de Comunicação, EBC, com autonomia editorial. O que ocorreu é que foi detectado um erro na matéria e assim como qualquer cidadão, que pode e deve nos alertar de um erro, a assessoria do Ministério da Educação tomou a iniciativa em relação’.

Como se observou acima, as alterações foram além de meras correções de informações erradas. Portanto, as acusações de censura e interferência deveriam ser levadas a sério. Estritamente falando não houve censura. A matéria não foi submetida à aprovação prévia do governo e depois de publicada, não houve ameaça de sanções legais, caso não fossem removidos conteúdos considerados ofensivos. A Constituição de 1988 garante a liberdade de expressão e desde 2009, quando o Supremo Tribunal Federal revogou a Lei de Imprensa que vigorou no Brasil de 1967 a 2009, não existem, no país, diretrizes que definam o que é a censura, com exceção das faixas indicativas para filmes e programas de televisão e decisões pontuais da Justiça baseadas na coibição de crimes de calunia.


No entanto, na sua Norma de Jornalismo, lançada em junho deste ano, a EBC revela uma visão mais ampla que ajuda a balizar esta questão: ‘A busca da verdade, da precisão e da clareza, o respeito aos fatos… é fundamentos da credibilidade, patrimônio maior da imprensa livre e da comunicação democrática.… Sua construção, manutenção e defesa são sagradas e nada, absolutamente nada, justifica expor esse objetivo a qualquer tipo de risco. Zelar pela credibilidade é tarefa de todos os que trabalham na EBC, que a ela se vinculam por outros meios ou que fornecem conteúdos à empresa’. Sobre as assessorias de imprensa, a Norma reza: ‘As assessorias de imprensa devem ser limitadas à condição de fontes de informação. É papel dos jornalistas da EBC enriquecer as pautas sugeridas por elas, retirando o caráter comercial ou unilateral da sugestão e perceber as tentativas de valorização ou supressão de informações’ [ver aqui].

Quanto à questão levantada pelo leitor ‘empresa pública ou empresa do governo federal’, tanto na lei que constituiu a EBC quanto no decreto que aprovou seu Estatuto Social, determinam que um dos princípios a ser observado no exercício da sua prestação de serviços é: ‘autonomia em relação ao Governo Federal para definir produção, programação e distribuir conteúdo no sistema público de radiodifusão’. Ao mesmo tempo os mesmos documentos atribuem à EBC, para a realização de sua finalidade, a competência de ‘prestar serviços no campo de radiodifusão, comunicação e serviços conexos, inclusive para a transmissão de atos e matérias do Governo Federal’.

Normalmente há uma divisão clara para evitar contradições nesta relação: os serviços prestados contratualmente ao Governo Federal competem a uma área específica, a Diretoria de Captação e Serviços. No entanto, a linha às vezes se confunde quando as fontes consultadas na produção de matérias por outras áreas são autoridades federais. Esta parece ser a situação da matéria sobre o MEC. É bom frisar que esta é uma relação que não se restringe à EBC na utilização das fontes oficiais. Esta relação existe sempre entre os veículos da mídia e suas fontes. A situação se agrava, porém, quando a relação é privilegiada, como acontece nas entrevistas exclusivas. A manutenção deste tipo de relação frequentemente exige um nível de confiança mútua que pode ofuscar as linhas que definem os procedimentos profissionais recomendados.

No caso em questão, pode-se imaginar que quando leram a matéria na versão original os assessores do MEC – e possivelmente alguns integrantes do alto escalão do governo, dentro e fora do ministério – acharam a mensagem excessivamente ‘linha dura’ e, ao mesmo tempo, uma admissão de que o MEC estaria se colocando fora das negociações com os grevistas por não ter um plano alternativo. Com a eliminação da referência ao Ministério do Planejamento e à AGU no trecho que foi cortado, a mensagem foi abrandada, pois estes órgãos têm o poder de aplicar sanções contra os grevistas: corte de ponto e ações na Justiça para declarar a greve ilegal e multar os sindicatos. Do mesmo modo, as outras alterações puseram mais ênfase na confiança de que o exemplo do Proifes, ao aceitar o acordo proposto, seria seguido pelos outros sindicatos. No ‘spin’ (‘efeito’) dado na versão alterada da matéria, o MEC passou uma mensagem na qual o ministério continuava no centro da disputa, com credenciais válidas para a manutenção do dialogo com os sindicatos, sem abdicar seus poderes para outros órgãos do governo.

Convém lembrar o que foi observado no começo desta Coluna sobre a utilização da mídia para passar mensagens. Para as autoridades do governo, a mídia serve como meio de reforçar suas posições em relação às próprias fileiras e à opinião pública, além de mandar recados aos seus adversários fora e dentro do governo. Quanto a estes últimos, do ponto de vista das interferências, não deixa de ser relevante que estudos constatam que a terceira categoria mais frequente das proibições da censura na década dos 70 era os problemas internos do regime, depois das atividades repressivas do Estado e das atividades da oposição. [ver aqui]

Na realidade, em bases fatuais, praticamente nada mudou nas versões das matérias. A falta de um plano alternativo foi constatada em todas as versões, bem como a legitimidade com a qual o ministério via o acordo com o Proifes, a confiança num breve fim da greve e a premência do governo em enviar sua proposta orçamentária ao Congresso.

A título de sugestões, recomendaríamos: que ABr identifique as matérias baseadas em entrevistas exclusivas; que as alterações que não forem correções de fatos errados nas matérias sejam identificadas de uma forma diferente da publicação de uma errata.

Como diz o ditado: ‘A mulher de César não basta ser honesta, tem também que parecer honesta’.

Até a próxima semana