“Era um sábado, dia de eleição. Estava de plantão no jornal, mas sem estresse. Editora de ‘Cotidiano’, eu acompanhava de longe a movimentação em política, que cobria a escolha do novo prefeito de São Paulo (vai dar Maluf e Suplicy no segundo turno?). Eram tempos agitados: em Brasília, Itamar Franco assumia a Presidência depois do impeachment de Collor.
O jornal daquele dia, 3 de outubro de 1992, trazia um título pequeno na ‘Primeira Página’ informando que, na véspera, ‘pelo menos’ oito tinham morrido em uma rebelião na Casa de Detenção. A estimativa vinha dos hospitais, já que não havia dados oficiais. A única fotografia era a de um policial ferido.
No fim da tarde, quando as urnas estavam praticamente fechadas, o saldo verdadeiro daquilo que ficou conhecido como o ‘massacre do Carandiru’ apareceu: 111 mortos.
De repente, a notícia do dia estava na minha editoria, a eleição municipal e a troca de governo perdiam importância diante do tamanho da matança. Com pouco tempo para a apuração, o que foi possível publicar no domingo foi um relato da ação da Polícia Militar, a carta de um preso que negava que eles tivessem arma de fogo e um destaque para o fato de o Estado ter omitido o número de vítimas para não prejudicar o candidato do PMDB.
Mesmo sob uma saraivada de críticas, o governo estadual continuou retendo as informações, o que dava força aos boatos. Três dias depois da invasão, a manchete da Folha dizia que o saldo de vítimas poderia ser ainda maior. Os presos falavam em 280 corpos. Resposta do secretário da Segurança: ‘O aumento no número de mortos é plausível’.
Foi uma cobertura difícil, mas que, aos poucos, desconstruiu a versão oficial, de que os policiais tinham revidado os tiros dos detentos. Fotografias obtidas por Marcelo Godoy, na época repórter da ‘Folha da Tarde’, mostravam corpos nus amontoados, indício de que os presos tinham sido mortos depois de rendidos. Nas imagens feitas por um policial, aparecem também sobreviventes sendo obrigados a carregar corpos de companheiros –com medo da Aids, a polícia não tocava nos mortos.
A fotógrafa Marlene Bergamo, que estava no ‘Notícias Populares’, fingiu ser parente de preso e entrou com uma câmera escondida no IML, registrando a fileira interminável de caixões. Aos poucos, foram surgindo relatos de presos contando histórias de fuzilamentos a sangue-frio e de ataques de cães a feridos.
A imprensa e os intelectuais criticavam duramente a ação, enquanto a população se dividia. Mais da metade (53%) condenava o massacre, mas 29% apoiavam a polícia, o que era muito diante da tragédia recente. Segundo o Datafolha, esse percentual subiu hoje para 36%.
Como resposta ao massacre, o governo estadual criou uma secretaria especial para assuntos penitenciários e parecia que a vida atrás das grades entraria de vez na pauta da imprensa.
Vinte anos depois, os presídios, dominados agora pelo PCC (Primeiro Comando da Capital), viraram uma caixa-preta. O acesso é dificílimo. Antes da ação no Carandiru, era possível obter rapidamente, com o diretor da unidade prisional, autorização para conversar com um criminoso. Hoje, é preciso passar por um juiz, pelo diretor da cadeia e a resposta é quase sempre ‘não’. A justificativa é resguardar a segurança do próprio jornalista.
A imprensa, por sua vez, se acomodou e se desinteressou. Hoje não se sabe o que acontece nas prisões de São Paulo, onde vivem mais de 200 mil pessoas.
Como o crime organizado se impõe e como espalha sua influência para fora dos muros? Qual o poder real do Estado nas cadeias? O que os presos aprendem ali? Não há respostas no noticiário, que se atém às rebeliões (mais raras nos últimos anos), às discussões sobre como coibir o uso de celulares e às denúncias de más condições, que partem quase sempre de advogados, ONGs ou do Ministério Público.
A conclusão da ‘Veja’ em 1992 é, infelizmente, muito atual. ‘Cadeia é assim mesmo: só desperta a sensibilidade dos cidadãos honestos quando a animalidade que nela existe ganha uma dimensão formidável.’”