Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Em paz com a vida

Jader chegou a Londres em setembro de 1968. Eu estava aqui há um mês. Durante os 43 anos de nossa amizade, sempre que podia eu dava um jeito de encaixar no papo minha condição de veterano. ‘Você é novato por aqui não pegou a Londres de agosto de 68’ é um exemplo.

Jader nasceu no dia 22 de dezembro de 1934. Eu em maio de 35. Outra que virou obrigação para mim. Qualquer coisa que eu queria saber mandava lá, ‘Jader, você que é muito mais velho do que eu, me conta como foi a chegada do Zepelim no Brasil.’ Do outro lado da linha, vinha a gargalhada gostosa do Jader. Sempre. Um rir que mais de uma vez eu disse que se ele conseguisse engarrafar acabaria rico.

De uns anos para cá nossos encontros eram apenas pelo telefone. Ele morava num canto da cidade, eu noutro. Mas todas as semanas batíamos ponto. Cansei de enviar filmezinho do YouTube daqueles que chamávamos ‘nossos cantores’.

Futebol, rádio, música popular (com ênfase na brasileira) de qualidade, viesse de onde viesse, muito tango, bolero, choro. A mãe do Jader tocava, e muito bem, ao que parece, bandolim. Quantas pessoas você conhece cuja mãe tocava bandolim? E bem?

Comigo não, violão

Pelo menos uma vez por mês, um de nós tinha uma dúvida: quem gravou isso? Como é a letra daquela marchinha? Jader vivia me fazendo perguntas sobre isso e aquilo outro, ligado a passadismos. Como ele, eu estava noutra. Década, com certeza.

Jader, entre um desfile de qualidades, tinha um ouvido excepcional. Escutava uma vez uma música e saía cantando. Perguntei se quando garotão tinha discoteca. Ele: ‘Nada. Pegava no rádio’.

Jader amava rádio. Achava que televisão (não era a dele) ou até mesmo a informática não chegavam aos pés do que foram as nossas rádios: Nacional, Tupi, Mayrink. Todas. Era outra das figurinhas que faziam parte de nosso eterno bafo-bafo.

Jader sabia de tudo e de todos que tinham a ver com rádio. Seus jingles, seus comerciais. Do mais modesto locutor (Jader foi um excelente ‘espica’, como se dizia) à mais vedete das cantoras. Nem falemos de conjuntos vocais. Das imitações do Jader de Orlando Silva e Cyro Monteiro. Mais, forçando a barra, as quatro vozes de um conjunto vocal, outra paixão mútuas nossa.

O jogo não cansou durante mais de quatro décadas. Mineiramente, ‘causos’ e mais ‘causos’ contados pelo Jader. Belo Horizonte, a Belô dos anos 50, está magnificamente captada no, uma lástima, único livro que escreveu, No Tempo Mais que Perfeito.

Está tudo lá. Um livro com gente andando, trabalhando, namorando e, mais importante, sentada no botequim contando histórias. Prestando atenção, dá para se ouvir até hoje a risarada. Comprem o livro, abram e confiram. Tem Mate-Couro, Phymatosan e Leo Belico.

Conforme diz o Jader na apresentação daquilo que, no decorrer de sua feitura – levou tempo, hem? gozava eu – ele mesmo chamava de ‘catatau’, uma palavra do tempo do onça, conforme são as melhores palavras: ‘Não se trata de uma tentativa de resgatar o passado histórico da cidade: simplesmente o relato, numa linguagem jornalística de como vivíamos, o que fazíamos, o que acontecia e com que sonhávamos. Um reexame da linha do tempo que percorremos obedecendo a súbitas e indisciplinadas variações da memória.’

E no último parágrafo, de uma só linha, ‘…o túnel da memória continua infinito.’

Pura verdade. Jader emprega ‘simplesmente’ para se referir ao – não consigo deixar de chamar pelo seu codinome – catatau. Comigo, não violão. Uma bobagem que também vinha no bolo das figurinhas bafo-bafadas: expressões antigas.

Mais difícil

O danado do Jader ainda tinha tempo de ler e ler bastante. Só do melhor. Vivia citando Eça de Queiroz e o Camões de ‘… a grande dor das cousas que passaram…’. Música, muita música. Cantada. Lucho Gatica, Jean Sablon, Sílvio Caldas. Tinham de ser bons. E eram. Fomos duas vezes ver aqui o Billy Eckstine. Em 1969 e em 1983. Era, como eu, fã de carteirinha de Mr. B.

Nunca ouvi Jader falar mal de ninguém. Ou reclamar. Não cultivava o sossego, este é que o cultivava. Sempre orgulhoso dos filhos Marcelo e Eddie, talentosos e bem sucedidos feito ele, e nunca se cansando de adorar, como num tango de Discepolin, sua mulher argentina, Nelly. A Argentina era outra paixão sua. Como o quintal de sua casa em Cobham, no condado de Surrey.

Se fez falta quando deixou a BBC e virou, ao menos para mim, um Jader ao telefone, que dizer agora, com quem falar, menos de 48 horas depois que pegou o boné (não levem a mal, Jader entenderia perfeitamente o uso beirando o inapropriado) e se mandou?

Como disse um amigo comum em bilhete eletrônico para mim: ‘Jader era um sujeito em paz com a vida’. Nada mais verdadeiro. Sem ele, ficou bem mais difícil seguir o exemplo.

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Jornalista, colunista da BBC Brasil