‘Em tempos de reprises, este ombudsman considera importante repetir, até pela falta total de resposta por parte de quem foi criticado, o conteúdo da coluna publicada em 11 de dezembro passado. Um ano e oito meses após a primeira de muitas análises e colunas em que foi exposta aqui uma série de indícios da inadequação, para a TV aberta, particularmente a TV aberta brasileira, da linguagem e dos formatos da maioria dos documentários exibidos pela TV Cultura, a exibição do documentário ‘Espelho Nativo’ pelo programa DOCTV, indica que, nesta área específica da programação da TV Cultura, nada mudou. Continuam, de um lado, a inadequação e, de outro, a audiência inexpressiva.
Atualmente, parece continuar proibido escrever um texto e providenciar uma narração para que o conteúdo de um documentário fique atraente ou pelo menos compreensível. Pelo menos em documentários brasileiros feitos para cinema e que acabam sendo exibidos para audiências residuais nas grades generosas das emissoras públicas. A dúvida que fica, neste e em outros casos, é se a ausência do texto se deve à incapacidade de articulação do autor do roteiro ou a uma opção equivocada de narrativa.
Outro problema que persiste é uma espécie de volta ao tempo em que entender o que era dito nos filmes nacionais era um pesadelo, devido à péssima qualidade da captação de áudio. Os documentaristas parecem ignorar que uma captação de áudio problemática resulta em desconforto, quando a exibição se dá em salas de cinema, e em ruído incompreensível, quando o mesmo filme passa na TV.
E como se não bastassem esses obstáculos técnicos e de linguagem, o conteúdo do filme de estreia do DOCTV tinha tudo para afugentar a quase totalidade dos telespectadores que passaram pelo canal por volta das 22h30m daquela noite de sexta-feira. A própria chamada veiculada nos intervalos da programação, que teria o objetivo de seduzir o público com os aspectos mais atraentes do filme, mais parecia o enunciado de uma tese de antropologia, ao definir ‘Espelho Nativo’ da seguinte maneira: ‘As questões que envolvem o tema indígena no estado o Ceará são discutidas a partir da interação de indígenas com a produção do documentário’.
Não deixa de ser irônico o fato de que no programa anterior a este DOCTV, mais uma edição do ‘Provocações’ de Antônio Abujamra, a convidada do dia, a produtora Sara Silveira, responsável pela viabilização de filmes de inquestionável repercussão cultural como ‘Alma Corsária’, ‘Ação entre amigos’, ‘Cinema, aspirinas e urubus’, ‘Bicho de sete cabeças’, ‘Person’, ‘Falsa loura’, ‘Dois Córregos’, ‘Durval Discos’ e os recentes ‘É proibido fumar’ e ‘Insolação’ – este último vencedor do Festival Internacional de Brasília – tenha passado boa parte do programa detalhando a dificuldade dos realizadores para sustentar a própria atividade num país onde só 8% das pessoas que assistem filmes brasileiros.
Depois de dizer que reconhecer que para um filme ‘bonito’ ou ‘importante para a cinematografia brasileira’ chegar ao público ‘são outros quinhentos’, e de confessar, diante da famosa câmera da verdade de Abujamra, que seu sonho é ‘ter um filme de sucesso’, Sara deixou gravada uma lição de humildade:
‘Você não pode arregaçar. Se o filme responde, você vai lá e roda mais uma copiazinha e vai jogando’.
A julgar pelo documentário que o programa DOCTV exibiu logo depois, não parece que os responsáveis pelo projeto, os da TV Cultura e os parceiros externos, estejam sequer preocupados com a conquista de qualquer público que seja.
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A última do português não é piada, 2 de fevereiro
Jornalistas e colunistas, à exceção dos que fazem televisão, não costumam gostar muito de televisão. E deixam esse sentimento muito claro no que escrevem, seja em colunas ou em reportagens. Nossa mídia impressa, quando discute a qualidade da TV, tende a traduzir a condição de veículo de massa da TV como uma condenação irremediável à superficialidade rasteira e popularesca. Quando tenta explicar o alcance extraordinário do veículo, desenha cenários sombrios e orwellianos de manipulação, mentira e mistificação. E quando desdenha o potencial dos formatos e linguagens da TV, gosta de decretar a incompatibilidade do veículo com qualquer forma elogiável de arte ou cultura.
Não deixa de ser surpreendente, portanto, encontrar, na página 6 da Ilustrada da Folha de S. Paulo de 2 de fevereiro, uma coluna assinada por João Pereira Coutinho sob o título ‘Em defesa da televisão’. No texto, o colunista questiona as críticas ao merchandising das novelas brasileiras, publicadas em edição anterior da mesma Ilustrada e, citando o livro ‘Revolution in a box’, de Charles Kenny, diz: ‘A TV tem seus excessos, como qualquer produto de uma sociedade de massas. Excessos nocivos, entendam. Mas é possível que, no balanço final, os ganhos sejam maiores que as perdas, independentemente dos clichês alarmistas que intelectuais de esquerda ou de direita gostam de vender sobre o assunto’.
Quem não está acostumado com isso estranha, como diria o personagem de um humorístico da TV dos anos 80. Estranha mais ainda quando João Pereira Coutinho, depois de lembrar que existe, atualmente, 1,1 bilhão de aparelhos de TV em todo o mundo, diz que ‘ essa realidade esmagadora, longe de pôr em risco o tecido moral e epistemológico das sociedades, tem sido e pode continuar a ser uma alavanca econômica e até intelectual para os países mais pobres e para as suas populações mais carenciadas’. Ele conclui dizendo: ‘Talvez seja mais politicamente correto vestir a toga do moralista para denunciar a vulgaridade e o filistinismo da televisão. O gesto, para além do ignaro, seria inútil’.
Para os responsáveis pela programação e pelos conteúdos exibidos pela TV Cultura, considerando a grade às vezes marcada por momentos pra lá de autistas e inacessíveis, o texto de Coutinho deixa no ar mais do que uma voz dissonante da pancadaria (ressentida) que boa parte da mídia impressa aplica diariamente na televisão. Deixa também uma pergunta: lá no fundo, quantos dos que fazem a TV Cultura realmente concordam com o colunista da Folha?
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Selva impenetrável, 1° de fevereiro
É mais do que razoável supor, considerado o perfil médio dos telespectadores da TV Cultura e deixando de lado os desafios urgentes do debate sobre como obter audiência sem perder qualidade, que exista demanda para um programa dedicado à questão indígena no início das noites de domingo, na grade de programação da emissora.
Deixa de ser razoável, no entanto, imaginar que a demanda seja a mesma para dois programas dedicados à questão indígena, um entrando no ar imediatamente após o outro, num início de noite de domingo, não apenas na grade de programação da TV Cultura de São Paulo, mas de qualquer outra emissora que não seja uma espécie de ‘TV Funai’.
A dose dupla – ou overdose, para a maioria dos telespectadores – aconteceu no último domingo, dia 31 de janeiro, quando a emissora exibiu, logo depois dos créditos finais de mais uma edição do programa A’Uwe, sem fazer qualquer esclarecimento, conclamação ou contextualização que justificasse tamanha redundância temática, um documentário cuja identidade só ficou inteiramente clara depois de longos e impiedosos quatro minutos – uma eternidade em termos de televisão.
A seqüência inicial de dois minutos e dez segundos do documentário, mostrando uma indiazinha que coleta água em uma cisterna, a falta de narração no silêncio quebrado apenas pelo som de pássaros e a abordagem de câmera do tipo ‘olhar viciado urbano profanando a pureza da vida selvagem’ davam a impressão de que o programa A’Uwe, destino natural desse tipo de conteúdo, não tinha acabado. Mas tinha.
Perto dos três minutos, finalmente entra uma narração, em francês legendado, de autor até aquele momento não identificado, que diz: ‘Eu tinha ido até o fim do mundo em busca do que Rousseau chamou de ‘os progressos insensíveis do começo’. Havia buscado um estado que não existe, que nunca existiu e provavelmente nunca existirá’. No instante seguinte, ilustrando a enésima câmera subjetiva singrando um rio no meio da selva, a voz acrescenta: ‘Eu havia buscado uma sociedade reduzida à sua mais simples expressão, a sociedade Nambikwara na qual todos eram iguais’.
Aos 3m18m de documentário, o telespectador médio ainda não sabia que se tratava de um texto de Claude Lévi-Strauss, cuja morte recente deve ter sido o motivo para a reapresentação do documentário. Aos 3m39s, em meio a imagens aéreas amazônicas, ficamos sabendo que o texto do documentário é narrado por um certo Jean-Claude Carriere – que o filme não informa ser o ator, roteirista e importante ex-colaborador do cineasta Luis Buñuel – e inclui trechos de ‘Tristes Trópicos’, o livro que consagrou Lévi-Strauss internacionalmente.
Somente aos 4 minutos de exibição, tempo suficiente para assistirmos um bom curta-metragem, surge na tela o nome do documentário: ‘Trópico da Saudade – Claude Lévi-Strauss e a Amazônia’, um filme de Marcelo Fortaleza Flores. No quinto minuto, a lógica implacável da comunicação em TV aberta já tinha triturado as boas intenções e transformado essa mistura infeliz de elitismo, incomunicabilidade e programação incompetente num grande desserviço à memória de Lévi-Strauss, à causa indígena e à acessibilidade da antropologia.’