‘Os títulos são temas recorrentes nas colunas dos provedores. Nem sempre pelos mesmos motivos, mas sempre porque os títulos são peças essenciais na relação de confiança entre o jornal e os seus leitores. Isto porque, em geral, a leitura de um jornal começa pelos títulos, sendo que muitas vezes se resume a eles. A razão de queixa mais frequente será sobre os títulos que ‘dizem mais do que a notícia, ou que a contradizem’, numa citação de Jorge Wemans, o primeiro provedor do Público, para quem este ‘erro deontológico grave’ deveria figurar no Código Deontológico dos jornalistas.
No entanto, nem todos os problemas surgidos com esta difícil ‘especialidade’ do jornalismo – a exigente arte de saber titular – resultam de excessos ou simplificações com as quais o jornal pretende seduzir o leitor, muitas vezes à margem da ética. Pode acontecer, simplesmente, que um título não tenha conseguido traduzir a verdadeira essência da notícia ou que ‘apenas’ não corresponda ao perfil editorial do jornal.
Através dos títulos, em geral, apoiados por antetítulos e pós-títulos, os jornais pretendem sintetizar em frases, normalmente curtas, o principal de cada notícia. Sendo que essas frases podem ser informativas ou interpretativas ou incitativas (havendo autores que referem outras variantes), de acordo com a orientação e a tradição do jornal.
Segundo Mar de Fontcuberta (1), antes de construir um título, o jornalista deve colocar a si próprio três perguntas: ‘o que é notícia neste texto? O que a diferencia de outras notícias? O que vai interessar mais ao leitor?’ Respondidas estas perguntas, o jornalista procurará encontrar a melhor formulação, considerando também o espaço a ocupar na página. Construirá então um título informativo (tecnicamente mais fácil) ou um outro. ‘Um título incitativo não se programa, não se encomenda, não se fabrica industrialmente. Requer um golpe de asa do qual resulte um produto cultural único, sem precedentes nem sucessores’ (2).
O autor refere-se a títulos criativos que incorporam muito de ‘suspense´, de surpresa, de poesia, de vida ou de prazer intelectual’.
Não é esta a linha de orientação do Público no que respeita à titulação: ‘o princípio dos títulos do Público é serem informativos. O redesenho do jornal em 2001 teve precisamente por objectivo reforçar essa componente’ – respondeu José Manuel Fernandes, questionado sobre o assunto, devido ao e-mail de um leitor que estranhou a manchete do dia 14 de Junho (relativa ao resultado das eleições europeias): ‘Voto de castigo e, como frase muito mais pequena: Maioria dos governos saiu derrotada das europeias’.
Pedro Miguel de Almeida considera que estas frases ‘traduzem juízos de valor de carácter político’, o que considera ‘inadmissível num jornal que se diz pluralista’. Acrescenta que os títulos escolhidos ‘são explicativos, em termos de um juízo de valor político, no âmbito da pura opinião política’, quando era ‘possível a escolha de um título meramente informativo porque é essa a missão de um jornal’.
Responsável por esta manchete, o director do jornal reconhece que nem sempre se cumpre o princípio dos títulos informativos, sendo que o título em apreciação ‘era composto de duas partes. Uma objectiva: maioria dos governos saiu derrotada das europeias. Outra que sublinhava uma das interpretações dessas derrotas: terem sido vítimas de um voto de castigo’.
José Manuel Fernandes justifica que quando um jornalista trata, ‘sobretudo na primeira página’, uma informação já muito conhecida, ‘há alguma necessidade de oferecer ao leitor algo mais do que ele viu na véspera nas televisões’, justificando-se assim títulos ‘como esse voto de castigo ou, por exemplo, o título do dia da derrota de Portugal perante a Grécia, que era lágrimas na festa’.
O director do Público considera que a regra não é cumprida, umas vezes por boas razões, outras vezes por más. Assim, procurar a ‘interpretação e não a opinião’ para ir um pouco mais adiante, quando se está perante uma informação já muito conhecida, é uma boa razão; enquanto que construir ‘títulos valorativos, opinativos, adjectivados’ a propósito de uma informação nova é uma má razão.
Será que a regra pode ser usar títulos informativos, excepto se houver ‘boas razões’ para não o fazer? E isso, mesmo depois das alterações adoptadas pelo jornal com vista, precisamente, a acentuar essa componente informativa ? É claro que, relativamente ao caso em apreço, se pode perguntar se a expressão ‘voto de castigo’, ou outra similar, não será uma interpretação tão consensual que, num certo sentido, se tornou um facto.
Mas se não for assim, regressamos à questão de princípio: tal como uma notícia não deve incluir a opinião do jornalista (podendo, no entanto, a mesma ser publicada, separadamente) também o título deve cingir-se ao elemento noticioso, para que o leitor não tome como factual aquilo que é opinião ou interpretação. Sobretudo se for essa a regra adoptada pelo próprio jornal, como é o caso. Mesmo que o jornalista tenha que se confrontar com o problema de conquistar o interesse do leitor para notícias que ele já conhece como espectador ou ouvinte. Uma dificuldade real, mas que só o jornalismo pode resolver, procurando dados novos ou novos ângulos da mesma notícia e fazer deles títulos.
Porque, como nota Mário Mesquita, ‘nos termos da deontologia do jornalismo, a titulação deveria corresponder a um desígnio essencialmente informativo’ (3).
Foi esse o desígnio seguido na procura de um título que, no entanto, mereceu a contestação de Armando Araújo.Vem também na primeira página (edição de 9 de Junho) e é manchete, tal como o caso anterior: ‘Resolução das Nações Unidas legitima ocupação do Iraque’.
Diz o leitor sobre este título: ‘parece-me abusivo e enganador, porquanto não tem suporte nos factos relatados’ que ‘referem nomeadamente, sem qualquer ambiguidade, o seguinte: O texto da resolução devolve formalmente a soberania ao Iraque (…) e a decisão marca em termos jurídicos, o fim da ocupação’.
Jorge Almeida Fernandes, autor da notícia, considera a questão ‘pertinente’. E, julgando entender a interpretação feita pelo leitor, explica a sua opção: ‘nem dentro nem na capa se escreve que a ONU legaliza ou legitima a invasão. O que a ONU legaliza é a ocupação a partir de 30 de Junho, dentro de um novo esquema jurídico. Não legitima nem aprova retrospectivamente a guerra, limita-se a dar legalidade a uma situação de facto, para permitir uma transição para a soberania plena do país’.
Foi o sentido desta ideia, que se tornou claro na explicação do jornalista, que não apareceu, traduzido com evidência, na manchete do jornal. E, sendo informativo, um título não deve apenas garantir que o leitor lê o que lá está escrito. Deve também assegurar que ele não lê outra coisa.
(1) – ‘A Notícia’, Editorial Notícias.
(2) – Claude Furet, ‘Le titre – Pour Donner Envie de Lire’, citado por Daniel Ricardo em ‘Ainda Bem Que Me Pergunta’, Editorial Notícias.
(3) – ‘O Quaro Equívoco’, Edições Minerva, Coimbra.’