‘Deve o jornalista limitar a liberdade de informar, em nome do interesse público que é, precisamente, um valor em que assenta o dever de informar, bem como o direito a ser informado? O facto de um jornalista estar de posse de informações que considera jornalisticamente interessantes e socialmente relevantes para a comunidade, é condição bastante para publicar essas informações?
Ao jornalista apenas deve interessar a divulgação de notícias, sendo-lhe indiferentes os efeitos dessa divulgação?
São estas, no fundo, as interrogações que Paulo Leandro, de Santarém, fez chegar ao provedor, a propósito da notícia publicada no dia 19 de Junho, sob o título ‘Polícia segue árabes suspeitos de prepararem atentado no Algarve’.
Em síntese, a notícia, com chamada na primeira página, revela que três árabes, que fontes policiais confirmaram serem suspeitos de poderem estar a preparar um atentado, estavam a ser procurados no Algarve pela unidade de combate ao terrorismo, criada para o Euro 2004. A notícia acrescentava que os suspeitos tinham sido vistos a filmar um parque de estacionamento subterrâneo e relacionava a suspeição com o jogo entre a Grécia e a Rússia, dando este último país como potencial alvo de terroristas, devido à questão tchechena.
AO LER A NOTÍCIA, PAULO LEANDRO ESTRANHOU, NÃO SÓ o título, que considera ‘capaz de originar algum mal-estar e insegurança junto da população’, mas todo o texto: ‘acredito ser contraproducente a publicação de notícias ou informações sobre a luta anti-terrorista e que digam respeito a investigações ou operações em curso, já que, a meu ver, poderão dificultar ou mesmo impossibilitar a continuidade dessas investigações’.
O leitor considera que o efeito negativo é duplo: ‘os terroristas também lêem jornais! ao verem as suas pretensas actividades publicitadas em meios de comunicação, a sua reacção normal será a de redobrar as sua precauções de encobrimento das actividades, dificultando assim o trabalho de investigação das forças de segurança’. Por outro lado, pergunta: ‘E a frustração dos profissionais das forças de segurança ao verem divulgado o fruto do seu trabalho, que se queria discreto ? Ou até mesmo o risco acrescido para esses elementos, porventura infiltrados na rede ?’
Paulo Leandro termina reiterando as suas dúvidas no quadro das responsabilidades dos ‘media’: ‘acredito que a minha opinião possa ferir o conceito de Liberdade de Imprensa, mas creio que se há assuntos que devam ser cuidadosamente analisados antes da sua veiculação e que a sua publicação deva ser ponderada, os relacionados com a luta anti-terrorista são-no sem dúvida’.
OUVIDO O AUTOR DA NOTÍCIA, VERIFICA-SE QUE TODAS estas precauções foram observadas, considerando o jornalista ‘compreensíveis’ as questões levantadas pelo leitor: ‘Eu mesmo, tendo a informação há alguns dias, tive sérias dúvidas em fazer a notícia’ – explica José Bento Amaro, acrescentando que, por isso, decidiu consultar vários jornalistas, na hierarquia e fora dela. Todos estavam de acordo com a publicação, devendo a notícia incluir ‘um comentário de uma entidade oficial’.
O jornalista avançou no seu trabalho mas, ainda assim, sem certezas: ‘Seria legítimo poder, de algum modo, criar um clima tenso?’
Um caso ocorrido em Fevereiro e que lhe fora contado por um polícia seu amigo, acabou por ajudá-lo: ‘Esse meu amigo estava a conduzir um moldavo que havia recebido ordem de extradição. A meio do voo, o moldavo disse-lhe que a partir do dia 11 (11 de Março) tudo seria diferente em Portugal’.
José Bento Amaro recorda que a história, então não valorizada, viria a ser manchete do PÚBLICO, confirmada pelo próprio director do SEF, após o atentado de Madrid, ocorrido exactamente naquela data.
Pensando nela, o jornalista pergunta-se, perante a notícia contestada pelo leitor: ‘quem me garante que, desta feita, a divulgação de alguns dados não poderá ter evitado qualquer mal ? Ou será que fui estragar o trabalho das polícias ? Sinceramente, ainda hoje estou cheio de dúvidas’ – conclui, com honestidade, José Bento Amaro.
ADELINO GOMES, UM DOS JORNALISTAS QUE JOSÉ AMARO ouviu antes de avançar com a publicação da notícia, aceitou explicar o seu parecer favorável à publicação: ‘se as forças de segurança confirmassem a notícia era porque, ao risco de se lançar o alarme na opinião pública se sobrepunha o receio de que um atentado pudesse ocorrer. Isto porque as autoridades costumam rodear estas questões de grande secretismo. Se aceitavam falar é porque ou estavam seguras de que iriam capturar os suspeitos antes da publicação da notícia ou consideravam que essa publicação dissuadiria os suspeitos da concretização dos seus planos’. Adelino Gomes considera que, neste caso, nenhum receio de alarmismo deveria tolher a acção do jornal. Não estava em marcha nenhuma tentativa de tentar minar o trabalho da polícia, nem havia a tentação de, irresponsavelmente, procurar a `cacha´ pela `cacha’.
É VERDADE QUE A NOTÍCIA É CONFIRMADA, EMBORA POR ‘fontes policiais’, não citadas, sendo que o sugerido ‘comentário de uma entidade oficial’ é um não comentário: ‘o MAI, por intermédio do minsitro Figueiredo Lopes, não faz quaisquer comentários em relação a questões que possam pôr em causa a segurança nacional ou que possam vir a gerar situações de pânico na população’.
É uma confirmação ? E é uma referência concreta às consequências possíveis ou apenas uma alusão retórica ?
Adelino Gomes, ao dar a sua opinião sobre a melhor conduta a observar, entendeu que, relativamente às consequências eventuais que a publicação da notícia poderia provocar, haveria dois casos a considerar: ‘ou existia perigo real de atentado, ou não. Se existia, a denúncia era uma obrigação, ainda que com o risco de poder causar alarme, salvaguardadas todas as medidas cautelares já vistas; se não existia, então a notícia era um exagero da polícia, sem consequências’. Neste sentido, Adelino Gomes conclui que ‘o jornalista e o jornal actuaram com responsabilidade, por um lado, e com sentido profissional, por outro’.
Depois das explicações apresentadas e dos argumentos aduzidos, o leitor continuará com dúvidas ? Tal como, afinal, o jornalista?
SE PARTIRMOS DO PARTICULAR PARA O GERAL, OLHANDO a questão de uma forma mais abrangente (embora excluindo os casos de realidades sociais condicionadas pelo terrorismo ou pela guerra) verificamos que a regra a observar é a do dever de informar, para a qual o Livro de Estilo do PÚBLICO abre excepções: ‘Para além dos casos de ordem privada dos cidadãos, a única limitação ao dever de informar é a segurança de alguém: perigo de vida ou represálias, casos de sequestro, chantagem ou qualquer prejuízo importante.
Para além disto, ao jornalista, com todo o seu sentido das responsabilidades, não compete colocar-se na posição dos polícias, ou dos juízes, tentando substitui-los, ainda que todos possam agir em nome do interesse público. Como fez José Bento Amaro, compete-lhe avaliar cada caso nas suas particularidades e, se a sua consciência ética o entender, decidir em função do debate com directores, editores e outros jornalistas. Mesmo que todas as suas dúvidas só se dissipem, definitivamente, com o posterior desenvolvimento da notícia. E isso é algo que os leitores mais atentos certamente aguardam, já que não compreenderão que uma notícia com estas características e que mereceu destaque em duas edições do jornal tenha, aparentemente, caído no esquecimento.’