Saturday, 28 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Joaquim Furtado

‘Entre regras e conceitos, alguns lugares-comuns do jornalismo: não há informação sem fontes, não há fontes desinteressadas, as fontes devem ser citadas, o jornalista não deve revelar as suas fontes confidenciais, as notícias devem ser confirmadas por mais do que uma fonte, o recurso a fontes não identificadas, aceite enquanto excepção, quase se tornou norma, nomeadamente no jornalismo político.

A propósito desta última asserção, cito alguns exemplos, retirados da notícia que vai ocupar esta crónica: ‘embora alguns dirigentes que lhe são mais próximos já dêem por garantida’; ‘disse ao Público fonte próxima de’ ; ‘tem sido ´pressionado´, ao que o Público sabe’ ; ‘o Público sabe, contudo que’.

Com base nestas fontes, assim referidas na notícia, o jornal apresentou, com grande destaque, na sua primeira página de terça-feira passada [dia 13 de Julho], o seguinte título, enquadrado numa fotografia: ‘António Vitorino prestes a avançar para a liderança do PS’.

No interior, onde a frase registava uma pequena variante formal sem significado (‘António Vitorino prestes a anunciar candidatura à liderança do PS’), o desenvolvimento da notícia confirmava o tom afirmativo dos títulos.

ACONTECE QUE, AO FIM DESSE mesmo dia, o comissário europeu convocou uma conferência de imprensa para anunciar a decisão que tomara, onde informou que não seria candidato. A notícia, que ocupava uma boa parte da capa do Público, era assim desmentida, com o jornal ainda nas bancas. E esse ‘desmentido’ seria tema de abertura nos jornais televisivos da noite. No dia seguinte o destaque da primeira página do Público, em dimensão similar ao da véspera, era a foto de José Sócrates, candidato à liderança do PS.

‘No noticiário político, as coisas passam-se assim: o que hoje é verdade, amanhã pode ser mentira. Vivemos com essa espada todos os dias’ – justifica a sub-editora da secção nacional, que editou a notícia em causa, assinada pela jornalista Maria José Oliveira.

Convidada pelo provedor a pronunciar-se, Eunice Lourenço comenta: ‘a autora da notícia, outros colegas do jornal e eu própria, que editei a notícia, julgávamos credíveis as fontes que, na segunda-feira, nos transmitiram a notícia de que Vitorino estava prestes a avançar para a liderança do PS. Seguimos todas as regras fundamentais num assunto desta natureza, nomeadamente a de confirmar a informação com mais de uma fonte’.

PARA MERECER O DESTAQUE QUE MERECEU, A notícia teve que obter a confiança do director de fecho da edição – a quem compete definir a primeira página do jornal – neste caso Nuno Pacheco: ‘o título (…) não foi cauteloso, como jornalisticamente devia, nem se fundamentava em informações do próprio, o que deveria, no mínimo, ter-nos levado a relativizar o peso de tal informação. Embora nesse dia várias fontes que consideramos credíveis tivessem afirmado isso [o conteúdo do título], o jornal deveria ter em conta que, em períodos como este, de crise política e alguma turbulência, há quem queira fazer passar desejos por realidades, transmitindo aos jornalistas o que, a dado momento gostariam de ver concretizado. Isso sucede mesmo com algumas fontes credíveis’.

Por estas razões, Nuno Pacheco tira a conclusão de que ‘o jornal devia ter relativizado as informações, colocando-as no condicional: ´António Vitorino poderá avançar para a liderança do PS’. E, dando como exemplo uma manchete recente em que esse princípio foi seguido, o director adjunto do jornal retira um ensinamento deste episódio: ‘daqui há uma lição a tirar, que também já não é nova: só se pode ser afirmativo quando houver absoluta confirmação ou imputação a uma fonte directa e identificada. Caso contrário (…) [a informação deve ser] relativizada e posta apenas como hipótese, nunca como certeza’.

A REFLEXÃO DE NUNO PACHECO PERMITE DISTINGUIR os planos prático e teórico. Independentemente do caso em apreço, conhecer as regras e defender os princípios nem sempre significa conseguir acautelá-las em todos os momentos. Factores de risco, favorecidos pelo clima de pressão das redacções, a natural vontade de chegar primeiro e com mais novidade, a procura de afirmação profissional, podem estar na origem de atropelos, mais ou menos graves.

E também é certo que, por vezes, há que adaptar às circunstâncias reais, certos princípios gerais. Flexibilizando-os ou, pelo contrário, tornando-os mais rígidos.

Recentemente, e na sequência dos escândalos ‘Kelly’ e ‘Jayson Blair’, a BBC e jornais como o ‘New York Times’ ou o ‘Washington Post’ reviram as suas regras de conduta sobre a utilização de fontes anónimas ou confidenciais (o que, aliás, poderia ser um exemplo a seguir). Obrigando à maior caracterização possível da fonte não identificada e criando procedimentos que evitem a banalização do seu uso, aqueles órgãos tentam prevenir a descredibilização da informação que veiculam (1).

É claro que uma informação, nomeadamente política, apenas baseada em fontes oficiais seria muito pobre, para dizer o mínimo. Por outro lado, é frequente o recurso à confidencialidade não estar justificado nem pela relevância da notícia, nem pelos riscos que a sua divulgação pode acarretar para a fonte (o que, como se sabe, é uma razão que pode tornar aceitável o anonimato).

OS JORNALISTAS ACEDEM A BOA parte da informação através do compromisso do ‘off’. Mas dessa forma não só garantem muitas notícias relevantes que, de outra maneira, nunca seriam conhecidas da opinião pública, como rejeitam muita informação que não passa no crivo do cruzamento de fontes. Nunca esquecendo – como o Livro de Estilo do Público sublinha – que uma fonte ‘é, quase sempre parte interessada (logo, parcial e incompleta)’, pelo que ‘o jornalista deve recusar o papel de mensageiro de notícias não confirmadas, boatos, ´encomendas´ ou campanhas de intoxicação pública’. Podendo acrescentar-se – tendo em consideração o caso presente – a possibilidade de fontes, mesmo credíveis, quererem ‘fazer passar desejos por realidades’ ou mesmo tentativas de instrumentalização do jornal, em favor de objectivos que lhe são alheios.

Isto, sem questionar a seriedade dos jornalistas, agindo na convicção de que podem, eles e os leitores, confiar nas suas fontes.

Mas é exactamente em nome dessa seriedade que o jornal deve reconhecer quando erra. E, precisamente porque para os leitores não há senão responsabilidades do jornal, independentemente dos culpados, o jornal deveria ter pedido desculpa aos leitores quando, no dia seguinte voltou ao tema. Mesmo reafirmando a convicção, como fez, de que quando foi dada à estampa, a notícia da véspera era verdadeira.

1) De um texto publicado, em 2 de Março, no site do ‘Observatório da Imprensa’ (organismo brasileiro de acompanhamento dos ‘media’ ) sobre um artigo do provedor do Washington Post, Michael Getler: ‘(…) o diário sempre teve como norma a cautela com citações anônimas. Mas, dependendo da editoria, ela não era aplicada com tanto rigor. Os repórteres que cobrem política, por exemplo, já estão habituados a detalhar menos de onde vêm as informações que estão publicando, e será penoso acostumá-los a trabalhar de forma diferente. Mas é uma briga que vale a pena ser comprada’’