Saturday, 02 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Joaquim Furtado

‘As tradicionais fontes de receitas da imprensa – vendas e publicidade – juntou-se, mais recentemente, um outro meio de potenciar a exploração comercial dos jornais: o marketing.

Ao leitor é proposta a aquisição do jornal – com as suas matérias editorial e publicitária – mas também a compra de produtos ou serviços lançados pela própria publicação ou pela empresa que a edita.

Acontece que o papel crescente que as técnicas de ´marketing` vêm desempenhando na imprensa, se tem implicações positivas no plano da saúde financeira das empresas, pode não estar isento de insalubridades no plano da sua relação com as redacções.

Concretamente – e retomando o tema da última crónica publicada nesta coluna, antes do período de férias: será que o facto de livros, DVD´s e CD´s distribuídos com o PÚBLICO, serem promovidos através de textos escritos nas páginas do jornal por alguns do seus redactores, constitui um problema de contornos deontológicos?

A permanente apropriação mútua entre fórmulas jornalísticas e publicitárias, cada uma tentando o máximo de eficácia junto dos públicos, coexiste com uma tensão resultante da disputa de territórios.

No lugar onde se derruba a fronteira, ao ponto de ela se tornar imperceptível para o leitor, é certo que se levanta um alerta ético.

Se no caso da publicidade externa, a imprensa adoptou fórmulas que resultam melhor ou pior (1), o que dizer no caso da publicidade cujo anunciante é o próprio jornal?

Será que a situação é suficientemente diferente para que se conclua pela inexistência de constragimentos éticos ?

Convidado a pronunciar-se em nome da direcção do PÚBLICO, Nuno Pacheco considera que sim:

‘Em primeiro lugar, é claro para nós que um jornalista não deve envolver-se, por razões éticas, em actos de publicidade. Ou seja, que deve, como diz o ponto 10 do Código Deontológico do Jornalista, ‘recusar funções, tarefas e benefícios susceptíveis de comprometer o seu estatuto de independência e a sua integridade profissional.’ Ou, como diz o Livro de Estilo do PÚBLICO (‘Princípios e normas de conduta profissional’), recusar ‘cargos e funções incompatíveis com o estatuto do jornalista. Por exemplo: ligações governativas ou ao poder autárquico, às Forças Armadas, polícias e similares; à publicidade, relações públicas, assessorias e gabinetes de imprensa e/ou de imagem (…).’

‘No caso dos vários produtos distribuídos com o PÚBLICO, – prossegue Nuno Pacheco – desde o início que todos eles têm a participação activa da área editorial. Foi uma opção nossa, tanto da direcção editorial como da administração da empresa, porque quisemos que tudo o que viesse associado ao jornal PÚBLICO, como suplemento gratuito ou vendido, tivesse uma lógica complementar com o jornal impresso, de certo modo idêntica à dos suplementos.

Isso aconteceu desde logo, em 1992, com o primeiro coleccionável, Museus de Portugal, distribuído gratuitamente aos domingos, que em termos de fascículos para coleccionar foi pioneiro na imprensa portuguesa; e assim continuou nos seguintes. Quando passámos, até por razões de gastos, dos coleccionáveis gratuitos (quase sempre aos domingos) para os produtos vendáveis, a escolha final dos produtos continuou a fazer-se de acordo com uma selecção editorial, cabendo a escrita dos artigos com eles relacionados aos jornalistas mais identificados com a área (literatura, cinema, música) ou com cada produto em si.

Passou-se isso com os livros do colecção Mil Folhas mas também com os DVD da série Y, ou com os livros de BD, onde os textos publicados no jornal podem ser considerados textos jornalísticos de divulgação e não de promoção pura e simples dos produtos (para isso, há campanhas publicitárias nas quais obviamente não nos imiscuímos)’.

‘Assim – escreve a terminar o director-adjunto do PÚBLICO – a abordagem jornalística dos livros, discos ou filmes que vendemos pode comparar-se à que habitualmente fazemos dos livros, discos ou filmes que estão no mercado e aos quais somos alheios. Com a ressalva de termos contribuído, à partida, para a escolha dos primeiros – e isso determinar, de certo modo, o nosso empenhamento.

Assim, o que publicamos não são textos de promoção, no sentido publicitário da palavra, mas de apresentação, vários deles apelando a um olhar crítico sobre as obras em causa (nos filmes, isso sucede com maior frequência) e não um simples apelo à compra. Cada texto procura ser um complemento jornalístico ao produto em si. O caso do coleccionável sobre o 25 de Abril, escolhido, compilado, analisado e editado por jornalistas (e só depois vendido, como complemento do jornal) é um dos exemplos mais extremos. Da forma como foi idealizado, transformou-se numa série jornalística para celebrar a data, com vários artigos no jornal a acompanhá-la; só que, devido ao suporte em que foi editada, teve que ser vendida. Mas também o jornal é vendido e isso não lhe tira a essência’.

A posição da direcção do PÚBLICO assenta, sobretudo, na ideia de que a escolha dos produtos conta com a participação da área editorial, (garantindo a sua qualidade) e apoia-se na distinção entre textos de divulgação e textos de promoção ‘pura e simples’. Desta forma, a participação activa de jornalistas na produção desses textos não suscita dúvidas de natureza deontológica.

O provedor não partilha desta opinião. Comecemos pelo seguinte: são diversos os factores (de noticiabilidade) que levam os jornalistas a seleccionar os factos que merecem ser notícia: actualidade, proximidade, importância relativa, dimensão do universo a que dizem respeito e vários outros. No caso dos produtos em causa, o seu lançamento torna-se notícia apenas porque o jornal decidiu lançá-los sendo, portanto, do seu interesse promovê-los. Se não fosse assim, o jornal poderia anunciar, com igual empenho jornalístico, um livro, um DVD, um CD de idêntica qualidade que a concorrência tivesse decidido lançar…

Na verdade, ao redigir textos daquela natureza, o jornalista aceita reduzir a margem de liberdade que exige noutras circunstâncias, alienando isenção e independência (ainda que o faça em nome do interesse do jornal e do leitor).

Claro que o jornalista até poderá não ser obrigado a escrever – e neste caso não o será certamente. Mas as condições objectivas da sua independência não ficam também limitadas, quando se sabe que estas iniciativas estão internamente associadas à ideia de prosperidade dos jornais, quando não à sua sobrevivência?…

Por outro lado, não estando em causa a honestidade do jornalista, é certo que as circunstâncias o condicionam. Ele poderá escrever o que pensa de tal ou tal livro mas, habituado aos seus textos jornalísticos, o leitor interrogar-se-á, por exemplo, porque não são referidos aspectos como a qualidade da apresentação gráfica ou da tradução (que, como vimos na última crónica, afectou algumas edições). E é suposto que o jornalista ‘diga mal’ deste ou daquele produto sem ser afastado da tarefa (o que noutro caso não aconteceria)?

É claro que as obras clássicas normalmente lançadas no âmbito destas iniciativas estão consagradas, para além das opiniões individuais. Mas estamos a vincar princípios.

Por outro lado, a esta ambiguidade que poderia ser resolvida com recurso a soluções externas ao jornalismo, juntam-se outros equívocos: estes textos de promoção ou divulgação – nem sempre assinados – umas vezes surgem editorialmente desvalorizados na secção ‘Colecções’, outras, pelo contrário, aparecem nas páginas da ‘Cultura’.

Tal como é obrigatória a sinalização dos espaços e publicidade, também a verdadeira natureza destes textos deveria ser devidamente identificada. Isto, independentemente do direito que assiste ao jornal de publicitar estas iniciativas, cujo mérito foi, aliás, reconhecido.

A anunciada revisão do Livro de Estilo do PÚBLICO poderia contribuir para clarificar o relacionamento entre o jornal e os seus leitores numa matéria hoje incontornável nas redacções: os efeitos negativos do papel crescente do ‘marketing’ na configuração dos jornais e os seus efeitos positivos enquanto fonte de financiamento que, ajudando a diversificar as dependências do jornal, reforça a sua independência.

(1) Para tentar conciliar interesses, a imprensa criou um género misto de jornalismo e publicidade (a ‘publi-reportagem’) que permite ao anunciante comprar espaço no jornal e fazer aí publicidade através de um texto ‘jornalístico’. Daniel Cornu – que nota que estes textos não devem ser assinados por jornalistas – considera, no entanto, que a fórmula da ?publi-reportagem` foi subvertida tendo, ‘quando alguns anunciantes se aperceberam de que podiam tentar jogar com a confusão, colonizar a própria parte redactorial’, uma alteração que envolveu os jornalistas ‘na medida em que as ?publi-reportagens` disfarçadas exigem a sua intervenção na confecção do jornal e, quantas vezes, na redacção dos textos’. In ‘Jornalismo e Verdade’, Instituto Piaget.’