Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Joaquim Furtado

‘São diversos os tipos de acontecimentos que ocupam os meios de comunicação social, embora aos olhos da generalidade dos leitores eles possam parecer indiferenciados. Todos correspondem a factos que, de acordo com os critérios dos jornalistas, se transformaram em notícias. No entanto, são distintas as características de cada um, estando os acontecimentos tipificados por diversos autores.

Desde os acontecimentos imprevisíveis que se impõem aos órgãos de informação, até aos acontecimentos construídos por esses mesmos órgãos ou produzidos por outros protagonistas – sejam sociais, políticos, económicos, culturais ou desportivos.

Enquanto os primeiros, não programados, exigem uma ‘natural’ cobertura jornalística, os segundos existem em função dos agentes que os fabricam.

Qualquer instituição, um governo, um partido, mesmo uma pessoa individual, pode preparar um evento com o objectivo de lhe dar existência através da imprensa, da rádio ou da televisão, assim como também estes meios promovem factos noticiosos em benefício da sua própria imagem (embora servindo também o interesse público).

Este tipo de acontecimentos foi identificado no início dos anos 60 pelo ensaista e historiador norte-americano, recentemente falecido, Daniel Boorstin, que os designou de ‘pseudo-acontecimentos’. No seu livro ‘A Imagem’, Boorstin atribui algumas caracerísticas fundamentais ao ‘pseudo-acontecimento’, designadamente o facto de não ser espontâneo e de ser criado com o objectivo de garantir a sua própria difusão.

Sondagens de opinião, debates, conferências de imprensa constituem exemplos desta categoria de factos, segundo o criador do conceito. O que significa que muitas das notícias e informações que diariamente circulam são, ou resultam de, ‘falsos’ acontecimentos.

O caso do barco ‘Borndiep’ será, entre nós, nos tempos mais recentes, o ‘pseudo-evento’ mais notável. Desencadeado pela organização Women on Waves, não só mobilizou as atenções de toda a comunicação social durante largos dias, como marcou a agenda política portuguesa no que diz respeito ao debate nacional da questão do aborto.

Os mais banalizados, mais fáceis de organizar, são as conferências de imprensa. Por isso são aqueles de que a comunicação social mais se ‘defende’, ao seleccionar os acontecimentos a cobrir. Ainda assim, certas conferências de imprensa asseguram grande impacto, conseguindo transmissão directa em jornais televisivos.

Há conferências de imprensa cujos promotores se limitam a distribuir um comunicado, recusando-se a responder a perguntas!… E outras que são mais ‘happenings’ de glorificação de líderes ou outras figuras do que encontros com os jornalistas; no entanto, a maioria são reuniões a que a comunicação social comparece na expectativa de que delas resultará informação de interesse público.

Inclui-se nesta ‘categoria’ aquela que deu origem à notícia ‘Portas poupou 8 milhões de euros com a central de compras’, publicada na edição de 4 de Agosto. Assinada pela jornalista Catarina Pereira, a peça refere-se a uma conferência de imprensa convocada pelo Ministério da Defesa Nacional, reproduzindo declarações ali proferidas pelo ministro e pelo secretário-geral do ministério.

‘O texto parece ser um resumo da comunicação feita por Paulo Portas’ – afirma Francisco Correia, em ‘e-mail’ dirigido ao provedor.

‘Onde está o trabalho de verificar se é verdade ou não o que ele diz. Onde estão as fontes independentes ?’ – pergunta o leitor, antes de concluir: ‘Isto é sintomático. Fica a sensação, depois de se ter lido o artigo, que se podia ao menos falar com alguém da oposição, nem que seja para ver outro ponto de vista.’

Comentando as observações do leitor, a autora da notícia afirma que fez uma ‘descrição do que ocorreu na conferência de imprensa’ e que nela ‘está bem explícito’ que ‘os dados apresentados se basearem em declarações do ministro, Paulo Portas, e do secretário-geral do Ministério da Defesa, Bernardo Carnall’.

Quanto às interrogações do leitor, Catarina Pereira responde: ‘O trabalho de confirmação dos valores apresentados seria, de facto, oportuno, mas exigiria (…) mais tempo e mais meios. O tempo que não foi investido nesta investigação foi investido noutros trabalhos. O facto de trabalharmos para um jornal diário pode, por vezes, impedir que os temas sejam investigados com a profundidade que gostaríamos.’ A jornalista conclui, considerando que ‘na impossibilidade de confirmar os dados anunciados pelo ministro, é válido noticiar que o ministro os anunciou’.

Em síntese, a jornalista está de acordo com o leitor, ao considerar que se justificava um trabalho de confirmação das informações divulgadas pelo ministério, mas argumenta com a falta de condições para fazer a investigação necessária. Acha, contudo, que o facto de não confirmar os dados não significa que os não divulgue.

Pela notícia não se fica a saber se os dados apresentados constituem espontânea revelação por parte dos promotores da conferência de imprensa, ou se resultam também de perguntas dos jornalistas presentes. Por outro lado, embora tendo servido para promover a assinatura de um protocolo, deduz-se que o encontro pretendeu apresentar um balanço de ‘nove meses de actividade’ da central de compras. Uma vez que o relato do que se passou não vai muito para além do alcance de um comunicado do ministério, percebe-se o reparo do leitor. Ou os dados avançados são de importância relativa, merecendo apenas uma pequena referência noticiosa, ou são relevantes, e até potencialmente polémicos, e então carecem de outro tratamento (não necessariamente ouvir a oposição cujo comentário pode, igualmente, exigir confirmação…).

Na notícia há ainda a considerar um outro aspecto que concorre na mesma direcção: a insuficiente distanciação do jornal, relativamente à informação que transmite. A começar pelo título (que não será da responsabilidade da autora da notícia), onde não é o ministro que diz ter poupado 8 milhões, mas sim o PÚBLICO que assume a informação como sua: ‘Portas poupou 8 milhões de euros com central de compras.’ E no próprio texto, nem sempre a escolha das palavras favorece essa distanciação.

Por exemplo: ‘O ministro destacou a ´eficiência´ e a ´transparência´do modelo de gestão, e sublinhou a compatibilidade (…).’

Escrito assim, é como se a eficiência, a transparência e a compatibilidade fossem dados demonstrados e o ministro apenas os tivesse posto em relevo…

Muito diferente é escrever que o ministro considerou que o modelo de gestão é eficaz e transparente, ou que, na sua opinião existe determinada compatibilidade.

O rigor das notícias começa por depender da propriedade com que são usadas as palavras.’