‘A idéia de que ‘não há sinónimos’ é saudável para o jornalismo. Obriga a procurar o termo mais adequado, já que, como se dizia na última crónica, o rigor passa por um elevado grau de propriedade no uso das palavras.
E a questão vem a propósito da manchete do Público do passado dia 15: ‘António de Sousa e Mira Amaral `renunciam´ à Caixa Geral dos Depósitos’. O jornal escolheu o verbo renunciar, de importância central na mensagem. Usou-o entre aspas, o que permitia mais do que uma leitura. Estaria a citar a fonte da notícia? ou utilizava a expressão técnica que definia a saída dos dois ‘homens fortes’ da Caixa? Ou optava por um eufemismo por não estar seguro de uma informação – que, afinal, insinuava no pós-título: ‘divergências entre os gestores leva governo a acabar com presidência bicéfala do banco’…?
Nesse dia, o ‘Jornal de Negócios’ não hesita em descodificar: ‘Demitidos’. E, nas páginas interiores, confirma que os gestores foram ‘afastados’ pelo governo. Com menos informação, o ‘Diário de Notícias’ informa, numa chamada de primeira página, que ‘António de Sousa sai da CGD’. Usa um verbo que serve para todas as leituras, mas no interior precisa que o ‘governo decide afastar’ o gestor. Mais completo e peremptório, o ‘Diário Económico’: ‘António de Sousa e Mira Amaral afastados da Caixa’. E explica, logo no ‘lead’, que ambos tinham apresentado a ‘renúncia dos cargos que ocupavam’, no âmbito de uma solução negociada com o governo.
No dia seguinte, o Público destacava, naturalmente, a nomeação do novo gestor e, sobre a crise, citava uma nota governamental segundo a qual o ministro das finanças tinha recebido ‘o presidente e o vice-presidente da CGD, tendo-lhes comunicado a aceitação dos pedidos de renúncia aos seus cargos’.
Os leitores da véspera reencontravam a palavra ‘renúncia’.
A pedido do provedor, a autora da notícia, Cristina Ferreira, explica que ‘teve um duplo sentido’ a utilização das aspas:
‘Respeitando os factos – formalmente os dois gestores renunciaram aos cargos que ocupavam – transmitir aos leitores que por detrás da verdade oficial poderiam estar pressões da tutela para que se demitissem’.
A explicação é correcta. Mas implica que o leitor teria que subentender tratar-se de uma ‘verdade oficial’, uma vez que nenhuma fonte é citada ou invocada na notícia. Apesar do pós-título…
Por outro lado, o jornal não chegou a explicar que dentro da palavra ‘renúncia’ há um processo de acordo, nem as consequências dele.
Neste processo noticioso é interessante verificar que o governo parece ter conseguido o que pretendia e da forma que pretendia: defendendo a imagem dos gestores e poupando nas indemnizações (certamente, termos do acordo), fazer passar a ideia de que não hesitou em usar da sua autoridade para resolver uma situação insustentável e gravosa para o Estado. Ou seja, a fonte condicionou, e conseguiu controlar, a forma como a notícia chegou à opinião pública.
Palavras e números, nos dois temas desta crónica.
A notícia ‘PGR quer que o Governo se pronuncie sobre o ordenado do chefe de gabinete de Rui Rio’, publicada no dia 9, motivou um e-mail de António Carvalho, de Vila Nova de Gaia. Citando um excerto do texto em que se afirma que ‘o ordenado do chefe de gabinete do presidente da CMP ultrapassa o montante estabelecido para vencimento-base do PR’, o leitor considera: ‘Se queremos comparar vencimentos temos de comparar ambos os ordenados totais e, nunca como o jornalista fez, comparar o total de um com o parcial de outro’. António Carvalho acha que José Augusto Moreira, o autor da notícia, deveria ter escrito: ‘O ordenado do chefe de gabinete do presidente da CMP é exactamente 75 % do montante estabelecido para o vencimento do PR, como a lei determina’.
De caminho e sem qualquer hesitação, o leitor põe em causa a honestidade profissional do jornalista e atribui-lhe a intenção de ‘denegrir a imagem de uma pessoa’.
À questão, José Augusto Moreira responde que a notícia ‘não compara o ordenado do chefe do gabinete da CMP apenas com o vencimento-base do PR, compara-o também, e em termos absolutos, com o conjunto dos mais altos cargos do Estado’. E acrescenta que ‘a referência ao ordenado-base do PR, tal como claramente se explica no texto, decorre do facto de, nos termos da lei, ser este o valor de referência para a fixação das remunerações dos titulares de cargos políticos’.
O jornalista refere ainda que a tese da Câmara, segundo a qual o ordenado em questão corresponderá a 75% do vencimento do PR, ‘é claramente exposta no texto, onde até se explica que, a ser assim, aquele ordenado deveria ser então ligeiramente superior ao do primeiro-ministro e não exactamente igual ao do primeiro-ministro como na prática acontece’.
Vejamos: actualizando a notícia com a posição da PGR e revelando um recibo do vencimento de Manuel Teixeira, o jornalista contextualiza os novos dados no conjunto da informação já conhecida. Cita os argumentos da CMP (interpretando-os com base numa ‘tabela comparada de ordenados’, que publica na mesma página) assim como os argumentos contrários. Isto é, de forma mais ou menos interpretativa, o trabalho de José Augusto Moreira fornece as informações e as opiniões que permitem que cada leitor conclua por si.
Mas será que o leitor leu todos os elementos da notícia (que ocupavam toda a página de abertura da secção ‘Nacional’)? Será que a paginação favoreceu ou, pelo contrário, dificultou a leitura da totalidade do trabalho de José Augusto Moreira? As perguntas não são retóricas. O texto central estava separado dos restantes por um filete (uma linha) de alto a baixo da página, podendo induzir a ideia de que se tratava de assuntos não relacionados entre si e assim escaparem à atenção dos leitores.
O subdirector Amílcar Correia – que paginou o trabalho – explica que seguiu as regras e as práticas adoptadas: ‘Na página de abertura das secções devem ser paginados os textos mais importantes da respectiva actualidade desse dia. Frequentemente, a importância dos factos ou o tamanho dos artigos obriga a paginar na coluna da esquerda peças relacionados com o texto principal. Foi este o caso’.
Referindo que, na mesma edição, situações idênticas também se verificaram em outras secções, Amílcar Correia considera: ‘no caso concreto, as peças paginadas na coluna contêm títulos obviamente relacionados com a notícia principal (‘Os números/Ordenado superior aos mais altos cargos do Estado’ e ‘Tabela comparada de ordenados’), pelo que não vejo razões para que o leitor leia à direita e não leia à esquerda da mesma página. Em todo o caso, e embora os títulos não deixem dúvidas, é de admitir que um leitor menos familiarizado com o estilo do Público possa não perceber de imediato que os textos estão relacionados’.
A explicação tem presente as regras que o jornal adoptou nesta matéria e onde são consideradas diversas fórmulas possíveis para estas aberturas (1). Independentemente da escolha de uma ou outra fórmula, seguir a norma não impediria – e neste caso aconselharia – que o texto central remetesse para os outros elementos noticiosos editados na coluna separada pelo filete. Isso bastaria para conduzir os leitores. Uma vez que a notícia não é apenas o texto, a foto, a ilustração. É também a forma sob a qual é apresentada no jornal.
(1) Segundo o documento ‘Alguns conceitos essenciais do novo Público’, ‘o tema mais forte do dia’ (que pode ‘gerar um desenvolvimento que se trata em mais do que um artigo’) é aquilo que caracteriza as aberturas de secção. O mesmo documento estabelece que ‘as entradas de secção serão marcadas por uma coluna (…) onde se reunirão um conjunto de elementos fortes da actualidade do dia’ e enumera depois diversas fórmulas básicas que vão desde o ‘pequeno texto de opinião ou comentário do editor ou de um jornalista’ até mini-entrevista ou perfis, passando por uma ‘frase do dia’ ou ‘um número associado à actualidade’.’