Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Joaquim Furtado

‘O assunto voltou às páginas do Público no passado dia 7 (com desenvolvimento no dia seguinte): O Supremo Tribunal de Justiça (STJ) recusou ‘analisar, `por falta de objecto´, o pedido feito pelo advogado das vítimas, Pinto Pereira, no sentido de afastar o juiz desembargador Varges Gomes da apreciação de um recurso do processo Casa Pia’. Varges Gomes fora anunciado como relator do recurso do Ministério Público (MP) da não pronúncia de Paulo Pedroso. Ao requerer o seu afastamento, o advogado invocara a existência de ‘alarme social’, devido a uma notícia do Público que revelava ligações do juiz ao PS.

O STJ decidiu não se pronunciar, considerando que o juiz do processo é outro e não Varges Gomes (que pegou no recurso do MP quando estava de turno durante as férias judiciais).

Aparentemente, este será o desfecho definitivo de um episódio cujo acompanhamento, pelo Público, levou António Fernandes a dirigir-se ao provedor. Comentando as notícias sobre o caso, nas quais a jornalista Isabel Braga referia e explicitava as ligações do juiz ao PS (nomeadamente como fundador e administrador da Fundação para Prevenção e Segurança Rodoviária criada pelo governo de António Guterres), o leitor afirma:

‘O Público sempre foi e continuará a ser o paradigma do `jornal de referência´. Para o bem e para o mal. Nele se manifestam com particular nitidez as forças e as fraquezas da comunicação social portuguesa. A informação séria, objectiva e bem escrita, muitas vezes complementada por comentários altamente legíveis e esclarecedores, é certamente um dos seus pontos fortes. Os seus `colunistas´ – goste-se ou desgoste-se – são seguramente, na forma e na substância, os melhores da imprensa diária. Mas o Público tem também os seus rasgos de tablóide, cede à tentação do sensacionalismo, e fá-lo, não raro, com manifesta intenção de atingir alguém ou alguma coisa. Nem sequer se pode dizer que esteja em causa a ânsia de `vender papel´; o que aí se exprime é mais o puro e duro exercício de um poder que se possui embora se não assuma. Um exercício cujos resultados são ou podem ser mais devastadores do que os de qualquer medida política, investida policial ou decisão judiciária. Temos aí um exemplo recente e absolutamente nítido: as `notícias´ respeitantes ao juiz que irá escrever a decisão respeitante a um acórdão sobre um recurso pertencente à saga da Casa Pia. Na verdade, trata-se de `não-notícias´, ou, mais precisamente, da apresentação destacada e ordenada de factos verídicos soltos a que se pretende ligar um efeito interpretativo – o de que o juiz é, no mínimo, suspeito de parcialidade. A decisão que ele vai elaborar – e que, diga-se, será votada por outros juízes do mesmo tribunal – está, desde já, infectada, seja qual for. Dá razão à decisão recorrida, que foi no sentido de não acusar certa pessoa de certo crime? Claro: tinha `ligações´ (aliás verdadeiramente fantásticas) a essa pessoa e ao seu partido! Dá razão ao recurso e considera que deve haver acusação? Claro, não se quis afastar do processo e agora pretende mostrar que é imparcial! Ora a última trincheira que resta na defesa da justiça em Portugal consiste na até agora intocada imparcialidade dos juízes. Pode-se polemizar sobre tudo, menos sobre esse `mínimo vital´ – que é, afinal, a única condição verdadeiramente essencial para que neste país ainda se pratique justiça. As `não-notícias´ do Público mostram como pode fabricar-se descrédito – e como, quer se queira quer não, a comunicação social tem, efectivamente, altíssimas responsabilidades no estado a que `isto´ chegou.’

A esta apreciação (enviada para as ‘cartas ao director’), António Fernandes acrescenta, na reclamação ao provedor, os seus comentários em relação a uma nova informação, segundo a qual o advogado da Casa Pia requeria o afastamento do juiz desembargador, argumentando com a existência de uma situação de ‘alarme social’, resultante das notícias do Público sobre as suas ligações ao PS. E tomando o facto como um dado a favor do seu ponto de vista, o leitor interpreta: ‘O advogado não invoca um estado de suspeição por ele próprio assumida – alega, simplesmente, o `alarme social´ gerado pelo teor daqueles textos. Ou seja, traduzindo: o advogado invoca o mero facto de o conteúdo desses textos ser de molde a provocar no público a incerteza sobre a imparcialidade do juiz e, portanto, sobre a justeza da decisão (apesar de esta ter que ser votada por outros dois).’

À opinião do leitor, a jornalista Isabel Braga contrapõe: ‘Se as ligações do juiz em causa ao PS eram ou não notícia, apenas posso dizer que acho que sim, sobretudo porque o juiz podia ter-se escusado à tarefa, se quisesse. Essa foi também a opinião de todos os responsáveis pela edição do jornal, naquele dia.’

Na verdade, é isso que está em causa: saber se as referidas ligações são um facto que deve tornar-se notícia num jornal como o Público. Ou se, pelo contrário, são uma ‘não-notícia’ que o jornal publicou num ‘rasgo de tablóide’, ou por ter caído na ‘tentação do sensacionalismo’, e dessa forma permitir a leitura ‘de que o juiz é, no mínimo, suspeito de parcialidade’.

A existência daquelas ligações preenchia vários requisitos de noticiabilidade que justificavam a selecção do Público: eram ligações com significado e constituíam uma informação desconhecida respeitante a um aspecto especialmente sensível de um tema actual e de interesse público e, aliás, com grande impacto na sociedade portuguesa. O facto de – num caso em que o PS se considera vítima – o futuro judicial de um dirigente socialista poder depender da decisão de um juiz com ligações àquele partido confere à questão relevância noticiosa.

O leitor conclui que a notícia do Público lança uma suspeita sobre o juiz e sobre a decisão que ele venha a tomar, seja ela qual for. Mas não lançaria igualmente se as ligações viessem a ser conhecidas após o juiz ter lavrado o seu despacho, com a importante diferença de que a decisão já estava tomada? Por outro lado, o que realmente fica sob suspeita após a notícia do Público é a compatibilidade entre a existência das ligações e o desempenho das funções. Não o juiz. Excepto por sua iniciativa, ao aceitar essa tarefa.

A credibilidade da justiça só pode afirmar-se perante o escrutínio da opinião pública através do jornalismo, que – como diz o Livro de Estilo do Público – tem como uma das suas funções primordiais ‘exigir transparência e coerência aos actores da cena pública’. Nem se crê que esses actores pretendam outra coisa. Admitir que as notícias divulgadas prejudicariam uma decisão isenta do STJ não é um elogio à justiça. Por outro lado, os erros neste domínio, cometidos pela comunicação social, devem reforçar a vigilância de seriedade e a exigência de rigor do jornalismo, não devem inibir a imprensa de cumprir a sua missão.’