‘Nas sociedades democráticas o poder político e o ‘poder’ jornalístico são dois mundos interligados que, perseguindo objectivos diferentes e tendencialmente opostos, se influenciam e condicionam.
Para contornar, ou ‘controlar’, os media – por definição independentes e poderosos nas democracias ocidentais, onde são o primeiro sinal da liberdade – o poder político cria estruturas e adopta condutas que, por um lado visam minorar os efeitos negativos sobre si exercidos pelo papel fiscalizador da comunicação social e, por outro, fazer passar nos diversos meios, as mensagens que lhe interessa enviar à opinião pública. Os recursos e as técnicas usados pelos governos ao serviço da sua imagem são cada vez mais sofisticados, acompanhando a evolução permanente das conquistas tecnológicas ou das ciências sociais e do ‘marketing’ político.
Trata-se de tentar influenciar a comunicação social na divulgação dos temas que convém aos governos ver noticiados e conforme o ângulo que lhes interessa. Por exemplo: ocupar os jornalistas com material ‘informativo’ capaz de os manter afastados da atenção a questões importantes, mas delicadas para o governo. Há vinte anos, Michael Deaver, responsável pelo gabinete de comunicação de Ronald Reagan estabeleceu um sistema de articulação entre os principais colaboradores do presidente, assente em reuniões e almoços de trabalho onde – segundo um participante – era definida, ‘cientificamente’, a estratégia diária de relacionamento com os meios: ‘A questão essencial é: que vamos fazer hoje para melhorar a imagem de marca do presidente, do que queremos nós que a imprensa assegure hoje a cobertura, e como? ‘ (1)
Algo que mudou muito nos últimos vinte anos, de forma a merecer a admiração do próprio Michael Deaver para quem a actual Casa Branca, de George W. Bush, é a ‘mais disciplinada da história dos Estados Unidos’. Em notícia assinada pelo jornalista Armando Rafael (2), sobre uma reportagem efectuada pela revista ‘New Yorker’, refere-se que, de acordo aquela investigação, ‘a maioria dos jornalistas acreditados junto da Casa Branca só tem acesso às notícias que um reduzido grupo de assessores presidenciais lhes prepara diariamente, ignorando outros pedidos, solicitações ou reivindicações que sejam feitas’, o que significa que a estratégia da equipa de comunicação do actual presidente norte-americano passa por tentar ‘resistir à pressão dos media’ (a propósito, segundo uma sondagem revelada em Maio, 55% dos jornalistas norte-americanos consideram que a comunicação social se tem revelado pouco crítica em relação ao presidente).
A investigação da ‘New Yorker’ revela uma variante daquilo que descreveu John Keane (3), no início dos anos 90, referindo-se às conferências de imprensa na Casa Branca: ‘Certos repórteres são acreditados; as perguntas são feitas; as perguntas que permitiriam desenvolver os assuntos são rejeitadas; os temas frouxos têm prioridade; e desde o tempo de Truman que as declarações introdutórias, cuidadosamente preparadas, ajudam a marcar a agenda para os repórteres que aguardam’.
Ainda há alguns meses, nas páginas deste jornal, se dava conta de que a Associação de Jornalistas alemães acusava Gerard Schroeder de boicotar jornais e jornalistas tomados como críticos da acção do seu governo (4). Os jornalistas criticavam o governo do chanceler pelo facto ‘de excluir jornalistas críticos de conversas de `background´, recusar entrevistas e seleccionar repórteres para cobrir deslocações aos estrangeiro’. Ou seja, nas democracias ocidentais o relacionamento entre o poder político e o poder dos media é algo que os governos organizam cuidadosamente, obtendo para isso o concurso de conselheiros de comunicação, num universo de que emergiu a figura do ‘spin doctor’(5).
Há menos de um ano, em Portugal, não parecia ser assim. Durão Barroso, primeiro-ministro, constatava a existência de um problema de comunicação do seu Governo, mas não tinha a intenção ‘de investir numa assessoria especializada nas áreas da comunicação e imagem’. Marcelo Rebelo de Sousa criticava-o pela ausência de uma estratégia de comunicação que lhe permitisse tirar partido das medidas que o Governo tomava, ao mesmo tempo que chamava a atenção para a existência de dirigentes com máquina montada para lhes cuidar da imagem – caso de Santana Lopes ou Luís Filipe Meneses’ (6).
Dias antes, Santana Lopes defendia a ideia de que os jornalistas deveriam ter assento num senado. Numa intervenção pública, o então presidente da Câmara Municipal de Lisboa classificava a revisão constitucional como uma oportunidade perdida para promover a concertação entre os vários poderes e dizia haver ‘falta de equilíbrio nas televisões portuguesas: entre as boas e as más notícias, entre a capital e o resto do país, entre a informação e o entretenimento (…). Pelo facto de a televisão se ter também transformado num espaço que faz `julgamentos, onde não há recurso, nem defesa´ é a essência também do Estado democrático e de Direito que está posta em causa. Numa altura em que a `comunicação social é já o segundo poder´ esta revisão constitucional em curso vai ser uma oportunidade perdida. Porque o poder dos media não pode ser ignorado, `consagrar a mesma organização política [baseada nos três poderes] de há décadas é uma irresponsabilidade colectiva´, defendeu. Seria necessário, afirmou ainda, encontrar uma solução que poderia assumir a forma de senado, que promovesse a concertação de poderes. Um órgão, a depender do Presidente da República, onde os políticos se pudessem encontrar com os responsáveis pela economia ou a comunicação social (…)’ (7).
Santana Lopes é hoje primeiro-ministro (de um governo que, segundo a imprensa, criou uma ‘central de comunicação’). Será que, lidos à luz daquele pensamento, os episódios que têm marcado esse Governo em relação à comunicação social são enquadráveis na disputa ‘normal’ entre Poder e media, ilustrada pelos exemplos estrangeiros atrás citados? Será que podem ser entendidos como formas de, dentro das regras democráticas estabelecidas, tentar influenciar a opinião pública, conquistando os seus favores? lidos à luz daquele pensamento, os ‘casos’ Marcelo e RTP (resultantes de declarações dos ministros Gomes da Silva e Morais Sarmento) que para uns são inabilidades para outros sintomas, não parecerão sinais de inconformismo perante aquelas regras? Sejam eles manifestados com ou sem o concurso dos gabinetes de imprensa existentes nos vários ministérios e que, entre nós, são normalmente servidos por jornalistas recrutados nas redacções. No que convém também reparar.
1) ‘Mark Hertsgaard, ‘A comunicação social vítima dos negociantes’, Editorial Caminho, 1992; 2) Diário de Notícias, 16 de Fevereiro de 2004; 3) ‘A Democracia e os Media’, 1991, edição ‘Temas e Debates’; 4) ‘Jornalistas alemães contra `boicote´ governamental a órgãos de informação’, Helena Ferro de Gouveia, Público, 9.3.2004; 5) ‘Alguém, especialmente na política, que tenta influenciar a opinião pública através de uma informação favoravelmente manipulada apresentada ao público ou aos media’ – definição do ‘Dicionário Chambers para o Século XXI’, citado no ‘Dicionário de Jornalismo’ de Fernando Cascais, Editorial Verbo, 2001; 6) ‘Problemas de Comunicação’, Paula Sá, Susete Francisco e Pedro Correia, Diário de Notícias, 10.12.2003; 7) Da notícia ‘Ignorar poder dos media é uma irresponsabilidade’, de Elsa Costa e Silva, Diário de Notícias, 20.11.2003. (O excerto da notícia está entre aspas, correspondendo as passagens entre comas simples ao discurso directo atribuído a Santana Lopes).’