Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Joaquim Furtado

‘Os leitores mais atentos repararam – embora nenhum deles se tenha pronunciado – em duas pequenas notas, publicadas em páginas diferentes do Público do passado dia 9. Com posições opostas sobre o mesmo assunto, surgiram ambas no final de textos, assinados por dois jornalistas, um dos quais o director: no espaço do editorial (dedicado a outro tema) José Manuel Fernandes escreveu em ‘post scriptum’ : ‘Pedro Silva Pereira respondeu ontem no Público a uma notícia da nossa edição de sábado. A matéria de facto que evoca é susceptível de contestação, tema que desenvolvemos na edição de hoje. Num ponto, porém, o antigo secretário de Estado tem razão: devia ter sido ouvido e devia ter tido oportunidade de expôr os seus argumentos quando a notícia inicial foi escrita, como mandam as regras internas do jornal’. Mais à frente, na página 14, o jornalista José António Cerejo (autor da notícia) assina outro texto de carácter informativo e um artigo de opinião. No final deste, escreve também em P.S.: ‘Não tinha nada que ouvir Silva Pereira, porque transcrevi o essencial da lamentável posição por ele assumida em todo o processo’.

O contexto: no sábado, dia 6, o Público destacava uma notícia através da manchete ‘Governo manda investigar obra viabilizada por porta-voz do PS’ e, em subtítulo, ‘hotel em dunas algarvias a que está ligada a família de Almeida Santos teve luz verde do então governante Pedro Silva Pereira’. Dois dias depois, o jornal publicava, ao abrigo do direito de resposta, um texto em 14 pontos, onde Silva Pereira considerava ‘falsa e difamatória’ a notícia assinada por José António Cerejo: ‘esta notícia constitui um exercício repugnante de mau jornalismo: distorce ou omite factos manifestamente relevantes e foi publicada sem que previamente fosse ouvido o visado e sem que quaisquer diligências tenham sido feitas nesse sentido, violando assim, grosseiramente, as mais elementares regras legais e deontológicas’.

É na sequência deste texto (‘Porta-voz do PS responde ao Público’) que, no dia seguinte, surgem nas páginas do jornal, os dois P.S.contraditórios.

Centremos neles a atenção, procurando responder a dúvidas e tentar ver, para lá delas, o que se passou. Ouvir ou não o ‘visado’, duas regras para o mesmo jornal ? democracia interna ? gosto pelo debate ? conflito ? descoordenação ? casos próprios daquilo a que os teóricos chamam ‘rotinas profissionais’ do jornalismo?

Sobre o aspecto central da divergência, o código deontológico dos jornalistas é claro: ‘os factos devem ser comprovados, ouvindo as partes com interesses atendíveis no caso’. E e o Livro de Estilo do Público também:’ qualquer informação desfavorável a uma pessoa ou entidade obriga a que se oiça sempre o `outro lado´ em pé de igualdade’.

Será que o caso em apreço é diferente ? A pedido do provedor, José António Cerejo explica:’Na verdade as contingências da produção de um diário, com decisões editoriais que muitas vezes têm de ser tomadas em cima da hora, com a rotativa à espera para começar a imprimir o jornal, acabaram por levar a que PSP [Pedro Silva Pereira] tivesse um lugar central, o lugar principal, indiscutivelmente, na primeira página do jornal e no seu interior, no que respeita à fotografia e respectiva legenda.

Sucede que a opção do director de fecho, que eu subscrevi quando foi tomada, à beira do fecho da edição, de privilegiar o papel que objectivamente PSP teve no caso(…) trouxe PSP para um lugar que, admito-o, justificava que eu lhe telefonasse.

Só que, na prática, à hora do fecho do jornal, essa hipótese era completamente inviável, embora, pessoalmente, eu ainda a tivesse equacionado’.

Acrescentando que, embora não sabendo ‘muito bem o que lhe perguntaria’, já que a sua posição ‘estava claramente sintetizada (…) no seu despacho de há quatro anos’, José António Cerejo afirma : ‘por uma mera questão de princípio, julgo que, em condições distintas das que descrevi, teria contactado PSP. Embora pense que, se não o fizesse, isso também não corresponderia a ‘um exercício repugnante de mau jornalismo’.

Não ouvido a propósito da primeira notícia, também a peça do dia seguinte – surgida como réplica ao direito de resposta – não contempla a posição de PSP. Aqui há, no entanto, uma razão de outra natureza, explicada pelo sub-director Eduardo Dâmaso:’Silva Pereira recusou-se a ser ouvido por José António Cerejo e a direcção entendeu não dever destacar outro jornalista para o efeito’.

Além do texto noticioso, José António Cerejo publicava, na mesma página, um comentário onde respondia à principal acusação que lhe era feita, centrada na expressão ‘exercício repugnante de mau jornalismo’. Um texto ‘em defesa da honra’ – como explica ao provedor – e que termina com o já citado ‘post scriptum’: ‘O meu PS pretendeu apenas assinalar que eu não aceitava aquela acusação, sem entrar em detalhes por falta de espaço e tempo, mas também porque essa era uma questão lateral, que PSP pretendeu sobrevalorizar para me atacar. Mesmo assim, entendi reagir. Terei reagido da melhor forma? Provavelmente não. Mas reagi da forma possível, face à ofensa que me foi dirigida e à impossibilidade de me explicar mais detalhadamente’.

Apesar deste reconhecimento, o jornalista explica que escreveu não ter ‘nada que ouvir Silva Pereira’ porque lhe dedicava ‘ao todo (…), além da entrada do texto, a seguir ao subtítulo, e da sua repetição no segundo parágrafo do artigo, as 16 linhas que constituem o penúltimo parágrafo’ e que aí transcrevia ‘a única posição expressa que PSP emitiu em todo o processo arquivado no Ministério do Ambiente e que sintetiza o seu entendimento sobre a matéria’.

Como vimos, na mesma edição em que o jornalista afirmava não ter que ouvir PSP, o director afirmava o contrário. José António Cerejo nega que o seu texto seja uma resposta ao de José Manuel Fernandes. E, atribuindo o que aconteceu a falta de diálogo do director, explica que quando escreveu o seu P.S, ‘ignorava totalmente que o director do Público tivesse escrito (ou viesse ainda a escrever nessa noite ?) o que escreveu (no PS dele)’.

José Manuel Fernandes afirma que já era já muito tarde quando se apercebeu de que o texto do jornalista mantinha o PS que figurava numa primeira versão.Na impossibilidade de contactar José António Cerejo, preferiu mantê-lo: ‘poderia ter mandado cortar, mas tratando-se de um texto de opinião não o faria sem falar com o autor. Ou retirava todo o texto, ou o mantinha integralmente. Preferi que fosse publicado. Mas para que não pudesse aparecer como a posição oficial do jornal, mantive também o meu, deixando para os dias seguintes a análise da questão’ [que já foi apreciada em reunião de editores e vai sê-lo em Conselho de Redacção].

Temos então dois aspectos: O surgimento de dois textos e o facto de eles defenderem pontos de vista opostos. Embora possam ajudar a compreender o que se passou, as justificações de José António Cerejo – para não ouvir PSP e para escrever que não tinha ‘nada que ouvir’ – são insuficientes. Se o princípio não se aplica em situações que envolvem valores como o bom nome, então quando se aplica? José António Cerejo teve, por isso, razão quando equacionou a necessidade de contactar Silva Pereira, mas não quando desistiu de o fazer.

A ‘lamentável posição por ele assumida’ não seria uma boa razão para ouvir PSP?

O relevo que ganha um assunto de primeira página não torna ‘mais obrigatório’ o cumprimento do princípio. E ainda que prevalecesse o argumento contrário, porque não desistir então da capa ?

Por seu lado, ao escrever o seu ‘post scriptum’ – embora para reiterar o princípio correcto – o director do jornal escolheu uma via pouco ortodoxa que só um pronto esclarecimento nas páginas do próprio jornal evitaria que produzisse efeitos na imagem da vida interna da redacção. Permitindo, ao mesmo tempo, remeter o episódio para a matriz plural do Público.

P.S. Neste caso foi invocado duas vezes o direito de resposta, um mecanismo consagrado na Constituição de que beneficiam ‘todas as pessoas singulares e colectivas’ que tenham ‘sido objecto de referências, ainda que indirectas, que possam afectar a sua reputação e boa fama’. O Livro de Estilo do Público estabelece que ‘o princípio do contraditório é uma regra de ouro – todas as partes envolvidas serão sempre ouvidas e confrontadas – mas, se subsistirem razões para o exercício do direito de resposta, o Público acolhê-lo-à livremente nas suas páginas’. E estabelece ainda que o jornal replicará ‘às versões ou comentários abrangidos pelo direito de resposta, só quando estiver em causa a verdade dos factos ou acusações de boa-fé do jornalista’.’