Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Joaquim Furtado

‘Entre diversos outros pensamentos com que abre o ‘Manual da Redacção’ do jornal ‘Folha de S. Paulo’ está este, de Condillac: ‘vejo a gramática como a primeira parte da arte de pensar’. Vem a propósito. E será aplaudido por todos. Mais ainda, por aqueles que, com uma regularidade pendular, apresentam queixa ao provedor contra ‘os atropelos à língua’. Uns são erros mesmo, produtos do desconhecimento de quem escreve. Outros são gralhas e lapsos, embora as reclamações tendam a metê-los todos no saco da ignorância.

Agradece-se ao leitor, os reparos seguem para os jornalistas e para a editora de ‘copydesk’ e confia-se que a insistência vá produzindo os seus efeitos. É este o procedimento. Na verdade, embora incomodando muito, estas não são as queixas a que o provedor pensa imediatamente dedicar uma crónica. Outros temas acabam por secundarizar estas falhas que, sendo frequentemente indesculpáveis, alguns leitores arvoram em ‘delinquências’.

O tom das intervenções varia entre o muito sério, o compreensivo e o bem humorado. Os leitores são diferentes. Os erros também. Uns, mais ‘aceitáveis’, parecem do foro ‘técnico’ e não chegam a mobilizar o protesto do leitor, mas outros causam danos à própria ideia de jornalismo. Naquele dia, depois de ler o Público, José Ribeiro da Cunha tinha o direito de exclamar: ‘não é admissível que num jornal dito e tido por ‘de referência’ (não fora o meu jornal) se cometam, num único artigo, tantos atropelos à já tão maltratada língua’. O leitor contara cinco erros, todos bastante primários, num artigo cuja credibilidade ficou assim irremediavelmente afectada.

Os casos vão desde o ‘mandato de captura´ em vez de `mandado de captura´, ou `casuístico´(referente a advogado) em vez de ?causídico?’, apontados pelo leitor António Lino como erros graves que ‘seriam risíveis se não demonstrassem ignorância crassa de quem os escreve’, até ao erro de conjugação do verbo poder, que o leitor Daniel Mota diz detectar com frequência: ‘em vez de usarem o infinito pessoal `poderem´, usam o futuro do conjuntivo `puderem´. Por sua vez, Helena Soares, inventariou falhas numa recente edição do jornal, onde a ‘Trienal de Milão’ aparecia como de ‘Milhão’ e a ‘Esopaida’ passava a ‘Esopada’. E nessa inventariação, cometeu até o seu próprio erro: ‘a história do Café Martinho da Arcádia esteve indissoluvelmente ligado’ quando devia ser ‘ligada’ – nota a leitora, sem notar que o Martinho é da Arcada, tal como o jornal escreveu correctamente…

Uma arreliadora ‘flor’, para usarmos o sentido de humor da leitora que desdramatiza ao afirmar que ‘um texto sem gralhas é como um jardim sem flores’…

O que Cristóvão de Aguiar aponta não é uma gralha. É um erro com todas as letras. Detectado pelo leitor num texto recente onde a transferência de Gomes da Silva, de ministro dos Assuntos Parlamentares para ministro adjunto do PM, era considerada ‘uma solução que vai de encontro às pretensões do Presidente da República’. O leitor assinala que a expressão usada transmite a ideia contrária à pretendida pelo texto: a de que a solução vai ao encontro das pretensões…

Por sinal, esta é uma expressão ‘de risco’ daquelas que constam do ‘alfabeto’ do Livro de Estilo do Público, cujas páginas consagram normas e princípios sobre aquilo que nesta crónica se observa: ‘O bom gosto e um estilo apurado são imcompatíveis com erros gramaticais(…)’ – afirma-se no capítulo ‘o rigor da escrita’, onde há referências ao ‘bom uso do português’, ao ‘cumprimento das regras gramaticais’ e ao cuidado com ‘certos vícios e incorrecções de linguagem’.

Às dúvidas dos leitores responde o próprio Livro de Estilo, consagrando a figura dos ‘copydesks’ que ‘harmonizam, corrigem, melhoram ou reescrevem textos segundo os padrões jornalísticos do Público. Mas – acrescenta-se – cabe sempre aos redactores fazerem uma última leitura dos seus textos, com especial atenção a pontuação, acentuação, concordâncias e gralhas, cuidado que não deve ficar para o editor nem para os ‘copydesks’, que, aliás, não lêem todos os textos a publicar’.

É, precisamente, para estas atribuições que remete Rita Pimenta, a editora do sector de ‘copydesk’ – irónica designação para quem se ocupa, embora não só, em garantir o ‘bom uso do português’… – quando solicitada a justificar as queixas dos leitores.

Partilhando as responsabilidades, Rita Pimenta refere, no entanto, uma falta de profissionais, num sector que já teve ‘o triplo dos efectivos’, o que torna ‘diminuta a percentagem de textos’ lida por ele: ‘Para obstar aos presentes constrangimentos de funcionamento e na tentativa de (pelo menos) manter o nível que os leitores exigem e merecem, centrou-se o exercício desta função na revisão de página. Assim, como já previa o Livro de Estilo, ‘os `copydesks´ dedicam especial atenção a títulos, pós-títulos, entradas, legendas, início e fim dos textos; conferem ainda a observância das regras gráficas mais relevantes que caracterizam o Público’.

A editora acrescenta que a revisão de página se cinge ao caderno principal e é exercida sob a pressão do fecho da edição, numa ocasião em que há pouco tempo e muitos textos para rever: ‘Será esta uma das justificações principais para que se ?deixe passar? alguns erros. Outra explicação decorre da inevitabilidade própria de quem é deste mundo: errar’.

O director do jornal confirma que ‘o sector de `copydesk´ já foi muito maior’, invocando as novas possibilidades oferecidas pela modernização: ‘A recente introdução de uma nova tecnologia no processo de produção do jornal criou a expectativa que um conjunto de rotinas antes desempenhadas pelos desk iriam deixar de ser necessários, porque eram tarefas burocráticas, pouco estimulantes e estariam automatizadas. Isso levou a que não substituíssemos os elementos que, por motivos vários, designadamente o desenvolvimento de carreiras noutras secções da redacção, foram saindo deste sector’.

A concepção de José Manuel Fernandes aponta para um aumento da eficácia, através de uma conversão de recursos: ‘Alguns programas informáticos novos permitem, se bem utilizados, diminuir drasticamente o número de erros ortográficos egralhas do jornal, acreditando a direcção que muito pode ser feito para optimizar a sua utilização por jornalistas e editores, libertando inclusivé os desks da função tradicional de ‘papa-gralhas’ para funções mais nobres de controle de qualidade’.

O director do jornal considera que, consumadas as alterações, os erros diminuirão: ‘alguns ainda estão associados à fase de transição para os novos sistemas de produção, que exigem sempre uma fase de habituação, mas entendemos dever já enfrentar esse problema introduzindo novos mecanismos de controlo de qualidade de que os desks e a definição exacta das suas tarefas são uma parte naturalmente essencial’.

Por fim e independentemente das concepções e das medidas, José Manuel Fernandes identifica a primeira origem do mal : ‘quem escreve e o cuidado com que o faz. E haver sempre pelo menos outra pessoa, por regra o editor, a reler o texto. É aqui que deve residir o esforço de exigência com nós próprios, jornalistas, editores e directores’.

Apesar de todos os esforços, as gralhas e os erros parecem sempre prontos a dar novos motivos de queixa aos leitores. Revelam-se de muitas naturezas e por vezes parecem escrever-se a si próprios. Capazes de desacreditar um texto ou de prejudicar a imagem do jornal, podem também ‘redimir-se’ por caprichos de humor ‘inexplicáveis’. Há dias a manchete do Público chamava António Cartaxo, nome de um radialista, ao sindicalista José Ernesto Cartaxo. Na edição seguinte, a rubrica ‘O PÚBLICO ERROU’ ocupou-se do caso: ‘Por lapso, na primeira página do Público de ontem, o nome do dirigente da CGTP José Ernesto Cartaxo aparece como António Cartaxo. Pedimos desculpa a José António Cartaxo e aos leitores’.’