Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Joaquim Vieira

‘A ideia foi consagrada na fórmula de Henry Luce, lendário fundador da revista Time: para garantir a independência de uma publicação jornalística, a separação entre os seus departamentos editorial e comercial deve equivaler à ‘separação entre a igreja e o Estado’. Muito haveria a comentar sobre tal conceito e a sua evolução nas últimas décadas, mas para o que aqui importa o princípio reflecte-se na clara distinção que o leitor deve percepcionar entre matéria jornalística e matéria publicitária. O Livro de Estilo do PÚBLICO acompanha esta filosofia ao estabelecer que ‘a publicidade é uma área autónoma e perfeitamente demarcada nas páginas’ do jornal e que ‘todo o material publicitário vem sempre graficamente assinalado de forma clara e explícita que evite confusões ou associações ambíguas à mancha informativa.’

Como muita gente nem olha para os anúncios num jornal, a tendência dos publicitários é para, dando largas à imaginação, penetrarem cada vez mais na mancha informativa, na certeza de que aumentará assim a eficácia da sua mensagem. E é claro que as empresas jornalísticas não fecham os olhos a tais tentações: contratos para a inserção deste tipo de anúncios são mais valiosos, e não se pode ignorar que a publicidade é o principal meio de viabilização económica de um órgão de informação. A grande questão é saber onde se situa a tal fronteira de separação entre igreja e Estado.

Alguns leitores, muito sensíveis ao problema, susceptibilizam-se logo que sentem a publicidade ‘invadir’ o campo noticioso. Ainda há dois dias, o leitor José Batista queixava-se ao provedor de, na pág. 15 da edição do PÚBLICO dessa sexta-feira, ‘um anúncio publicitário cortar a meio uma notícia’, perguntando: ‘O jornal que se quer de referência da imprensa portuguesa deve vender-se desta maneira?’ Convém esclarecer que o anúncio em causa era, correctamente, encimado pela palavra ‘PUBLICIDADE’, conforme determina o Livro de Estilo do PÚBLICO para prevenir situações dúbias em que se possa confundir reclame com notícia.

Mas é curioso que o mesmo anúncio, com a mesma disposição gráfica e interrompendo também a leitura de um texto, surgia na pág. 13 da edição de dois dias antes (16 de Janeiro) sem qualquer referência a publicidade, o que denota pelo menos alguma aleatoriedade na aplicação dos princípios definidos pelo Livro de Estilo quanto a esta matéria.

Essa aleatoriedade tornou-se manifesta, aos olhos do provedor, com as recentes edições do PÚBLICO de 31 de Dezembro e de 9 de Janeiro, que apareceram envoltas numa ‘sobrecapa’ em papel couché constituindo em cada caso, dos dois lados da folha, num anúncio a uma marca. Na parte da frente, dentro do próprio anúncio, estavam inseridos o logotipo e os dizeres que caracterizam a primeira página do PÚBLICO, os quais eram repetidos na ‘verdadeira’ primeira página, que só se descobria depois de se virar a ‘capa’. Na segunda vez, o anunciante havia feito o pleno da imprensa nessa manhã, já que o mesmo anúncio, pelo mesmo método, aparecia também nos outros diários. Só que, ao contrário do PÚBLICO, alguns desses diários haviam colocado a menção a publicidade sobre o anúncio, e um deles prevenira mesmo de véspera os leitores que a edição seguinte iria ‘chegar às bancas com uma falsa primeira página’ devido a ‘um importante compromisso publicitário’.

Perante a forma, na aparência mais ‘descuidada’, com que o PÚBLICO tratou o assunto, o provedor inquiriu o seu director sobre se não haveria nos dois casos desrespeito pelas regras do Livro de Estilo. ‘Só existe obrigação formal de incluir a palavra ‘PUBLICIDADE’, por extenso, quando estamos perante um anúncio sob a forma de texto escrito’, começa José Manuel Fernandes por esclarecer. ‘Não era o caso.’ Adianta ainda: ‘Mesmo não se tratando de um texto escrito, onde a inclusão dessa palavra se justifica para impedir que a sua mancha gráfica se confunda com a mancha gráfica das notícias e outras matérias informativas, cabe saber se existiam ou não ‘confusões ou associações ambíguas à mancha informativa’. Do meu ponto de vista, não. Por três ordens de razões: i) a publicidade estava impressa num papel de textura diferente, inconfundível com papel de jornal; ii) não existia qualquer matéria informativa nas capas publicitárias; iii) a inclusão do logotipo, da data, do número da edição, do preço e do nome dos directores não me parece constituir matéria informativa, mesmo fazendo parte da identidade editorial do jornal; em contrapartida a sua inclusão justificava-se pois era necessário que, nesses dias, os leitores, perante jornais que estariam todos envolvidos pela mesma sobrecapa, soubessem que jornais eram, pelo que todos os periódicos que aceitaram essa publicidade também imprimiram o logotipo na sobrecapa, repetindo-o na primeira página verdadeira’.

Referindo no entanto a prática da concorrência nesta situação, J.M.F. acaba por concluir: ‘Apesar de considerarmos que o leitor não era levado a confundir espaço editorial com espaço publicitário, a impressão dessa palavra [‘PUBLICIDADE’] será considerada da próxima vez que for feita ao PÚBLICO uma proposta comercial idêntica.’

Não terminam aqui, no entanto, as explicações do director: ‘Seria ainda possível questionar a opção de aceitar aquele tipo de publicidade à luz do artigo 112 do Livro de Estilo (‘O PÚBLICO […] não subordina o interesse jornalístico ao interesse publicitário de anunciantes ou afins’). Este problema colocar-se-ia por a sobrecapa tapar a capa do jornal, impedindo os leitores de lerem as notícias sem terem de a levantar. Apesar de sabermos que essa prática é frequente em muitas publicações (desde as que são vendidas dentro de sacos de plástico opacos até a primeiras páginas totalmente ‘entregues’ à publicidade, muito vulgares nos jornais dos países nórdicos, que são também aqueles onde os índices de leitura são mais elevados), a existência do artigo 112 levou a direcção editorial [DE] a discutir com a direcção comercial os dias em que consideraria aceitável a sobrecapa. Fizemo-lo em função da agenda previsível e do dia da semana, mas assegurando que, caso ocorresse um evento imprevisto de extraordinária importância (um 11 de Setembro, por exemplo), teríamos o direito de reabrir a discussão e, eventualmente, adiar ou mesmo recusar a distribuição do jornal com as referidas sobrecapas (prerrogativa da DE prevista no ponto 122 do Livro de Estilo)’.

Nada há de errado na estimulante criatividade dos publicitários nem na angariação do máximo de anúncios por um órgão de informação, sinal da sua vitalidade económica e do seu bom posicionamento no mercado. O grande problema consiste na tal distinção de fronteiras, que, ao olhar para as edições do PÚBLICO, o leitor pode não compreender com clareza. Apesar do princípio formal enunciado por J.M.F. no início da sua resposta, o provedor, numa análise meramente ocasional e não sistemática, detectou nas págs. 13, 17, 21 e 39 da edição de 10 de Janeiro anúncios que, apesar de não se poderem, de forma alguma, confundir com a mancha gráfica da matéria noticiosa, estavam encimados com a menção ‘PUBLICIDADE’ (incluindo aos cadernos ‘ípsilon’ e ‘Economia’ do próprio PÚBLICO), enquanto um comunicado de uma junta de freguesia, em forma de publicidade redigida, aparecia na pág. 23 da edição de três dias depois (13 de Janeiro) sem qualquer aviso de matéria publicitária.

Pela sua anterior experiência profissional, o provedor pode garantir que os anunciantes necessitam tanto dos media como os media necessitam dos anunciantes. Não há pois que ter receio de definir regras claras a respeito da inserção de publicidade e de impor a sua aplicação com rigor, sem exclusão da abertura a propostas mais heterodoxas, eventualmente aceites após negociação. Ambas as partes ficarão a ganhar.

Recomendação do provedor. Além de transparentes e inequívocas, as normas quanto à inserção de publicidade devem ser entendíveis pelo leitor e aplicadas com rigor e método, salvaguardando, sem ambiguidades e sempre que necessário, a distinção entre espaço comercial e espaço editorial.’