‘Acusar um parlamentar de conflito de interesses é um acto de responsabilidade, pressupondo um prévio apuramento rigoroso dos factos
A notícia, saída na pág. 39 do PÚBLICO de 22 de Abril último (com chamada à primeira página) era categórica: o deputado social-democrata Jorge Neto (JN), presidente da Comissão de Orçamento e Finanças da Assembleia da República, ‘presta assessoria’ ao Banco Português de Negócios (BPN), entidade sob investigação actual das autoridades no âmbito da Operação Furacão, relativa ao funcionamento do sistema financeiro. Dizia-se ainda que na comissão da AR liderada por JN fora ‘decidida a abertura de um inquérito para analisar a supervisão do sistema bancário, segurador e do mercado de capitais’, sugerindo-se assim que o deputado seria juiz em causa própria. E, como comprovação da ligação do parlamentar ao banco em causa, adiantava-se que ‘a assinatura de Jorge Neto consta mesmo de alguns pareceres encomendados pelo BPN’.
As autoras da notícia, Cristina Ferreira (CF) e Mariana Oliveira (MO), não invocavam uma única fonte (identificada ou não) para sustentar as informações publicadas. Mas falavam com o visado, que desmentia a ligação ao BPN embora revelasse que o seu escritório de advogados, Jorge Neto, J. Carlos Silva & Associados, trabalha ou trabalhou para uma seguradora detida pela instituição bancária: ‘Admitiu estar ligado à Real Seguros, detida a 100 por cento pelo banco’, concluíam as jornalistas.
Dois dias depois (sem chamada à primeira página), o jornal publicava um desmentido (assinado não por JN mas pelo seu sócio João Carlos Silva) onde se consideravam ‘falsas’ todas as informações acerca da suposta ligação de JN ao BPN e se esclarecia que os serviços de advocacia prestados à Real Seguros haviam estado a cargo não do deputado mas de um sócio seu.
Ignorando aparentemente o desmentido, a jornalista São José Almeida (SJA), na sua crónica semanal publicada outros dois dias mais tarde, sob o título ‘Promiscuidade’, questionava: ‘Como vai JN gerir este conflito latente de interesses? Como é possível ser, ao mesmo tempo, responsável pela investigação e jurista que aconselha um dos investigados?’
Este artigo foi motivo para JN enviar novo desmentido ao PÚBLICO, desta vez com a sua assinatura, publicado ao fim do já metódico intervalo de dois dias. Nele o deputado voltava a negar veementemente a sua alegada ligação ao BPN, adiantando ainda que a competência da abertura do mencionado inquérito parlamentar não era da comissão a que preside: ‘Não sendo [o signatário], como não é, membro da comissão parlamentar de inquérito e não sendo, como não é nem nunca foi, advogado, consultor ou assessor do BPN (…), não há, obviamente, o mais remoto conflito de interesses’.
Acerca dos dois desmentidos, o PÚBLICO nada replicou ou esclareceu – nem as autoras da notícia, nem um editor, nem a direcção. Mas na sua crónica seguinte, em nota final, constatando o desmentido do parlamentar, SJA pedia ‘desculpa aos leitores e, evidentemente, ao deputado Jorge Neto’. E nada mais disse o jornal sobre o caso até ao envio para a redacção deste texto do provedor.
O sucedido suscita diversas questões sobre ética jornalística e sobre o modo de produção noticiosa da redacção do PÚBLICO. Acima de todas, o sempre presente problema da citação das fontes de informação, já abordado por este provedor em crónicas anteriores. Independentemente da lacuna que o provedor considera existir sobre a matéria no Livro de Estilo do PÚBLICO, acontece que a notícia não cumpre nem o normativo existente nem aquele que habitualmente é seguido pelas convenções jornalísticas universais. Ou seja, aceitando-se que, em tema desta natureza, as jornalistas não pudessem identificar a sua fonte ou fontes, deveriam confirmar a informação junto de pelo menos duas fontes independentes entre si, e em nenhum passo da notícia informam o leitor de que assim tivessem procedido. Poderiam eventualmente apoiar-se em documentos escritos (o que daria até maior credibilidade à informação), mas a falta de reacção do jornal aos desmentidos sugere a sua ausência.
O provedor solicitou explicações a CF e MO, que enviaram uma curta declaração resumida no seguinte: ‘As jornalistas admitem poderem existir algumas imprecisões no artigo, que, contudo, não afectam a substância da notícia. Jorge Neto não pode, no entanto, negar que a sociedade de que faz parte trabalhou para o grupo BPN’. Esta conclusão baseia-se nos seguintes ‘factos indesmentíveis’: ‘A sociedade [de JN] trabalhou para a Real Seguros, que integra o grupo BPN, conforme consta do próprio site da empresa e escreveu o PÚBLICO. (…) O BPN encontra-se sob investigação das autoridades de supervisão bancária e financeira, e do Ministério Público, no âmbito da Operação Furacão. Após as audições do caso BCP, alguns deputados do PSD da Comissão de Orçamento e Finanças apresentaram um requerimento potestativo que determinou a abertura de um inquérito para analisar a supervisão do sistema bancário, segurador e do mercado de capitais. Curiosamente, Jorge Neto não o subscreveu’.
Convenhamos porém que ser sócio de uma empresa que presta serviços a uma tributária do grupo BPN é diferente do que dizia a notícia em título (‘Líder da Comissão de Orçamento e Finanças presta assessoria ao BPN’) ou na chamada de primeira página (‘Jorge Neto é assessor de banco sob investigação’). Por outro lado, não ter subscrito o pedido parlamentar de inquérito, só por si, não autoriza insinuações a nível noticioso. São necessários elementos mais concretos, que manifestamente faltaram.
As jornalistas possuem a convicção da veracidade da notícia (pelo menos na sua parte nuclear) e a esperança de que tal venha ao de cima – e não é o provedor quem o vai contrariar. Mas as notícias não se fazem de convicções e expectativas, antes de certezas fundamentadas em fontes credíveis. Além disso, se as duas consideram que o essencial da notícia não está afectado, não se percebe a razão que levou SJA a pedir desculpas a JN.
Em contactos separados, CF e MO adiantaram alguns detalhes ao provedor. Para além de deficiências de articulação (CF trabalha na redacção de Lisboa e MO na do Porto), o provedor formou a ideia de alguma leviandade, falta de rigor e precipitação na forma como, a partir das vagas indicações recolhidas, se saltou para as conclusões publicadas. Particularmente frágil é a alegação sobre os supostos pareceres de JN para o BPN, já que as jornalistas nunca viram esses papéis nem têm indicações de que a sua fonte ou fontes os tenham visto.
O provedor não possui jurisdição sobre matéria de opinião emitida pelos colunistas, mas, dada a circunstância de SJA ser também jornalista do quadro redactorial do PÚBLICO, entendeu dever perguntar-lhe se, quando se referiu ao ‘conflito latente de interesses’ envolvendo JN, não havia lido o desmentido antes divulgado ou, lendo-o, não o levara a sério. A jornalista respondeu que ‘não tinha lido o desmentido, nem tinha conhecimento da sua existência’. Por uma questão de respeito para com os leitores, o provedor acha insólito que um jornalista desconheça aquilo que o seu próprio jornal publica e escreva sobre um tema sem antes se informar acerca dos seus desenvolvimentos.
Nos dois textos em causa, há também um claro problema de edição, já que um responsável da hierarquia jornalística deveria tê-los lido previamente e alertado as autoras, por um lado, para a falta de sustentação da notícia e, por outro, para o desmentido já publicado esvaziando a opinião emitida. Nada disso aconteceu, pelo que o provedor questionou também o director do PÚBLICO sobre a elaboração da notícia, perguntando ainda se não havia erros a admitir da parte do jornal. Foi prometida uma resposta da direcção, que porém não chegou a tempo de integrar esta crónica.
Acusar um deputado de conflito de interesses é um acto de grande responsabilidade pública, pressupondo um prévio apuramento rigoroso dos factos, o que não terá sucedido no caso vertente.
Recomendação do provedor. As regras da citação de fontes (orais ou escritas), que, se seguidas, impediriam as falhas verificadas, permanecem como pedra de toque da investigação jornalística, devendo ser sempre acatadas.
CAIXA:
O racismo quotidiano
A notícia ‘Homem cego foi obrigado a mendigar durante 12 anos’ (PÚBLICO, 8 de Maio, pág. 13) começa assim: ‘Começou ontem, no Tribunal de S. João Novo, no Porto, o julgamento de cinco elementos de uma família de etnia cigana acusados pelo Ministério Público dos crimes de sequestro, maus tratos e escravidão infligidos a um cego’. Se os acusados pertencessem à maioria étnica da sociedade portuguesa, seguramente que a notícia não se referiria a ‘uma família de etnia branca’; porém, os jornais tendem a sublinhar essa característica sempre que os suspeitos de crimes pertencem a minorias raciais. Cria-se assim a ideia junto do público de que os criminosos integram em regra minorias étnicas. É o racismo quotidiano dos jornalistas portugueses – involuntário, é certo, inconsciente mesmo, mas real. O Livro de Estilo do PÚBLICO estabelece que ‘a cor da pele ou a nacionalidade do suspeito de um crime nunca devem merecer relevância noticiosa, salvo quando existirem óbvias implicações com interesse público’ (ponto 24 dos Princípios e Normas de Conduta Profissional), mas quem é que respeita essa norma?’