‘Dois dias consecutivos de notícias na primeira página do Público desfavoráveis à imagem do primeiro-ministro puseram os cabelos em pé a muita gente (incluindo ao próprio chefe do Governo). A 1 deste mês, o jornal titulava que ‘José Sócrates assinou projectos que não eram seus nos anos 80’, no âmbito da sua actividade como engenheiro técnico (mas já dirigente socialista local). Na edição seguinte o jornal regressava à antiga vida profissional do líder do PS, que em certo período terá coincidido com a sua actividade como parlamentar (impeditiva de outro tipo de remuneração), colocando em manchete que o ‘deputado Sócrates exerceu funções privadas enquanto recebia subsídio de exclusividade’.
Ao provedor chegou ampla correspondência motivada pelos dois textos, na proporção de 20 mensagens condenando o jornal (geralmente em tom colérico e hostil) contra apenas uma apoiando a investigação realizada. Como as notícias não se fazem por referendo, teremos de encarar esta reacção como normal, já que em tais circunstâncias quem protesta é sempre mais activo do que quem aceita – e o provedor existe, aliás, para atender reclamações, não para ouvir elogios ao Público.
Na substância, as críticas recebidas dividiam-se invariavelmente em três categorias: a) os temas são irrelevantes, e o Público, ao destacá-los, está a desencadear uma campanha contra o primeiro-ministro sob as instruções do seu director, José Manuel Fernandes (JMF), apostado em assassinar politicamente o chefe do Executivo; b) o grupo Sonae, proprietário deste jornal, perdeu há menos de um ano uma oferta pública de aquisição (OPA) sobre a PT, e o Público desenvolve uma operação revanchista contra Sócrates às ordens do presidente do grupo, Belmiro de Azevedo, que acusa o Governo de responsabilidade no fracasso; c) o jornal entrou em deriva sensacionalista, numa tentativa de aumentar as vendas. Parte dos contestatários ameaçavam deixar de comprar ou de ler este diário.
Nenhuma das críticas punha em causa os procedimentos jornalísticos adoptados na pesquisa ou na escrita e apresentação dos dois casos – e, na verdade, analisando ambas as notícias, verifica-se que estão apoiadas em fontes e documentos devidamente referenciados e que Sócrates é ouvido previamente, pelo que nada de negativo há a referir quanto à sua elaboração. Por outro lado, o provedor não pode efectuar julgamentos com base em teorias da conspiração não comprovadas (como os dois primeiros tipos de reparos, sendo que em particular não se conhece qualquer traço de interferência dos donos do jornal no seu conteúdo editorial).
No que respeita às acusações de sensacionalismo, importa referir que as facetas da anterior actividade profissional de Sócrates trazidas a público, cuja legalidade tem sido disputada do ponto de vista jurídico, ajudam a completar o retrato de um primeiro-ministro que faz do rigor e da exigência uma bandeira da sua governação (tal como já acontecera quanto à questão da sua licenciatura, levantada também pelo Público a quebrar um silêncio ensurdecedor da imprensa, depois de o assunto há muito circular na internet). Este tipo de escrutínio dos titulares dos poderes públicos, que pode contribuir para escolhas mais informadas e conscientes dos eleitores sobre quem os deve governar, é tradicionalmente destacado como um dos apanágios mais nobres do jornalismo, pelo que releva mais da imprensa de referência, imbuída de forte componente de serviço público, do que da tablóide. Mesmo que tudo fosse transparente na actividade do engenheiro técnico José Sócrates, só o facto de ter assinado os projectos revelados pela pesquisa jornalística seria suficiente para questionar se é esse o padrão estético com que o primeiro-ministro olha para o Portugal do presente e do futuro.
O próprio Sócrates tem sido muito cauteloso nas palavras que usa para ‘desmentir’ o Público (em particular quanto à primeira notícia). Nunca garantiu, por exemplo, ter elaborado os projectos em causa, mas sim que os perfilhava. ‘Assumo a autoria e responsabilidade dos projectos que assinei’, disse ao diário, sendo ainda mais evasivo quando questionado sobre o assunto esta semana em S. Bento: ‘Nunca assinei nenhum projecto que não fosse da minha responsabilidade’. O que mostra que o jornal pode ter tocado numa corda sensível do seu passado profissional.
A parada subiu porém com as acusações lançadas contra o Público, há uma semana, aos microfones do Rádio Clube Português, por António Costa, ex-nº 2 do Governo de Sócrates e actual presidente da Câmara Municipal de Lisboa (CML). Costa retomou a tese da retaliação pela OPA perdida, declarando que ‘o Público é um jornal hoje indigno, que comporta-se de uma forma inqualificável, numa cruzada de ataque pessoal à figura do eng. José Sócrates’ e denunciando o autor das notícias, o jornalista José António Cerejo (JAC), como ‘o sr. Cerejo, que é especialista em perseguir e investigar, agora quase que até à infância, (…) dirigentes do PS’, e JMF: ‘Faz sobre mim uma campanha de carácter há anos. Porque é uma pessoa efectivamente desqualificada para o exercício da função que exerce’. O essencial da queixa do dirigente socialista parece residir na escolha de ‘alvos’ por parte do Público: ‘Há tanta gente na vida política portuguesa, porquê só socialistas? É uma coisa absolutamente misteriosa. É indigno num jornal, que pretende ser um jornal de referência, fazer campanhas de carácter sobre pessoas’.
Colocada a questão assim na praça pública, o provedor sentiu-se no dever de inquirir JAC e JMF acerca de um ponto crucial: há uma orientação no jornal para investigar exclusivamente os notáveis do PS, ou até, mais especificamente, uma operação ad hominem para pôr em causa o primeiro-ministro? Como é hábito, o leitor poderá ler as respostas integrais no blogue do provedor. Fica aqui o essencial dos esclarecimentos (sendo que a direcção do Público já havia defendido a actuação do jornal em editorial a acompanhar a segunda notícia).
Após mencionar casos que tem pesquisado envolvendo figuras partidárias do PCP ao CDS/PP, JAC não hesita em admitir onde recai a maioria das suas investigações: ‘Reconheço uma evidência: tenho escrito muito mais sobre pessoas do PS do que, provavelmente, sobre pessoas de outros partidos. E então? Será que o dr. Costa quer aplicar aos jornalistas uma espécie de quota relativa aos assuntos que podem tratar? X PS, Y PSD e por aí fora? Sucede ainda, que, desde 1990, data da criação do Público, o PS tem muito mais anos de maioria na CML, sobre a qual incide grande parte do trabalho que tenho produzido neste domínio, do que qualquer outro partido. E o mesmo sucede com as maiorias governamentais do PS no mesmo período. Acresce que a minha dedicação a este género de trabalho, por razões que não vêm ao caso, se intensificou a partir de 1995, restando 12 anos em que as maiorias PS são, provavelmente, ainda mais notórias. E é sobre quem tem o poder, como é sabido, que estes trabalhos incidem mais frequente e justificadamente.’
Nas suas explicações, JMF destaca que ‘não há nenhuma campanha ad hominem, há investigações sobre factos [estes e outros relacionados com Sócrates] que chegaram ao conhecimento do jornal’, as quais ‘justificavam-se pois ou incidiam sobre actos cometidos como membro do Governo ou actos profissionais realizados quando já era dirigente político, ou levantavam a suspeita de ter beneficiado de uma situação de favor.’ O director defende a imparcialidade do jornal mesmo a nível dos seus editoriais: ‘Sendo certo que muitos editoriais do Público foram críticos das políticas de Sócrates, outros saudaram medidas por ele tomadas e que eram muito polémicas (…). O meu estilo pessoal como editorialista pode ser contestado, mas todos os líderes políticos recentes têm, digamos assim, razões de queixa. É verdade que considerei, depois de uma entrevista que deu ao Expresso, que Sócrates era um ‘político de plástico’. Mas também acusei Paulo Portas de populismo a raiar a xenofobia, Durão Barroso de ser tão fraco que ‘nunca chegaria a primeiro-ministro’, Santana Lopes de irresponsabilidade, Marcelo Rebelo de Sousa de não ter resistido à tentação do lacrau, Alberto João Jardim de ser um tiranete. E por aí adiante. Fi-lo quando entendia que isso se justificava, e o único que fez queixa-crime foi Jardim, tendo eu sido absolvido. (…) Os políticos, todos eles, têm de se habituar à crítica e ao escrutínio público. Mesmo a críticas eventualmente injustas e erradas. Responder-lhes com declarações de guerra é, a meu ver, intolerável, por visar coagir os jornalistas e isolar as vozes críticas.’
Não publicar uma investigação porque a anterior visava a mesma entidade, ser ‘politicamente correcto’ ao ponto de meter notícias na gaveta porque é a vez de pôr outros em causa, significa perder a independência. O jornalismo não se substitui à justiça, mas deve ser tão cego quanto ela. Saber conviver com isso é, para os detentores de cargos públicos, uma prova de maturidade democrática.
Publicada em 17 de Fevereiro de 2008
Documentação complementar
Excertos das declarações de António Costa no programa Mesa para 4, do RCP, em 9 de Fevereiro (ouvir gravação):
‘O Público é um jornal hoje indigno, que comporta-se de uma forma inqualificável, numa cruzada de ataque pessoal à figura do eng. José Sócrates, e aliás, devo dizer-lhe, coincidentemente com o facto de o seu proprietário ter passado a achar que era por culpa do Governo que tinha perdido uma OPA onde se lançou. O que é gravíssimo é o que se passa com esse jornal. Primeiro, há um jornalista, que é o sr. Cerejo, que é especialista em perseguir e investigar, agora quase que até à infância, (…) dirigentes do PS. Começou com António Vitorino, depois teve uma longa obsessão com o dr. João Soares, agora é o eng. José Sócrates. Bom, há tanta gente na vida política portuguesa, porquê só socialistas? É uma coisa absolutamente misteriosa. E que é indigno num jornal, que se pretende ser um jornal de referência, fazer campanhas de carácter sobre pessoas. Eu digo isto porque eles fazem. O José Manuel Fernandes faz sobre mim uma campanha de carácter há anos. Porque é uma pessoa efectivamente desqualificada para o exercício da função que exerce. (…) Eu limitei-me a registar a coincidência, que a partir do momento em que o eng. Belmiro perdeu a OPA o Público desencadeou uma campanha de carácter relativamente ao primeiro-ministro. Isto é a sequência dos factos. Agora, se foi por ordem dele, se não foi por ordem dele, se foi o outro que é mais papista do que o papa, não sei, é capaz disso, mas olhe, não sei. Agora, que esta coincidência existe, existe, pronto, ponto final.’
Explicações de José António Cerejo ao provedor:
A acusação é velha e relha, mas não faz qualquer sentido. Sabe o dr. António Costa e sabe a generalidade dos seus camaradas de aparelho que eu já publiquei muitos e extensos trabalhos jornalísticos sobre indícios de práticas ilegais, ou pelo menos contrárias à mais elementar ética política, da responsabilidade de responsáveis do PSD, do CDS/PP e do PCP. Prova disso é, por exemplo, uma brochura editada em 2006 pela Juventude Socialista de Oeiras, no âmbito da campanha eleitoral para as autárquicas desse ano, com o título ‘Livro Negro do Verbo Isaltinar’ e com o subtítulo ‘A batalha da Informação Independente’. O opúsculo reproduz em fac simile dezena e meia de artigos de jornal sobre as suspeitas de ilegalidades que incidem sobre o ex-ministro do PSD Isaltino Morais, e metade deles são da minha autoria e foram editados pelo Público. Mas, para além de Isaltino, escrevi abundantemente sobre situações do mesmo género de que foi responsável um antigo presidente da Câmara de Sintra eleito pelo PSD, João Justino, e sobre casos duvidosos que envolveram José Luís Arnaut, como secretário-geral do PSD, Rui Gomes da Silva, ex-ministro do PSD, e David Justino, igualmente ex-ministro do PSD. Para não falar no caso Universidade Moderna, que na prática foi desencadeado por mim na imprensa e onde Paulo Portas e Santana Lopes também aparecem em papéis nem sempre confortáveis. Já no ano passado, durante três ou quatro meses, escrevi mais de uma dezena de desenvolvidos artigos sobre um conjunto de graves atropelos à ética e de actuações de legalidade muito questionável que tiveram como protagonistas vários responsáveis comunistas da Câmara da Moita, incluindo o seu presidente, João Lobo. Se achasse que se justificasse, e não é esse o caso, tal a natureza da acusação, encontraria nos arquivos de 18 anos de Público muitos mais exemplos da sua falta de fundamento. Mas sempre acrescento que reconheço uma evidência: tenho escrito muito mais sobre pessoas do PS do que, provavelmente, sobre pessoas de outros partidos. E então? Será que o dr. Costa quer aplicar aos jornalistas uma espécie de quota relativa aos assuntos de que podem tratar? X PS, Y PSD e por aí fora? Sucede ainda, que, desde 1990, data da criação do Público, o PS tem muito mais anos de maioria na Câmara de Lisboa, sobre a qual incide uma grande parte do trabalho que tenho produzido neste domínio, do que qualquer outro partido. E o mesmo sucede com as maiorias governamentais do PS no mesmo período. Acresce que a minha dedicação a este género de trabalho, por razões que não vêm ao caso, se intensificou a partir de 1995, restando 12 anos em que as maiorias PS são, provavelmente, ainda mais notórias. E é sobre quem tem o poder, como é sabido, que estes trabalhos incidem mais frequente e justificadamente. Para terminar direi ainda que falta saber se há partidos e organizações mais permeáveis à falta de transparência, ao abuso de poder, ao tráfico de influências e à corrupção. Mas a isso eu não sei responder. É assunto para sociólogos e não para jornalistas.
Explicações de José Manuel Fernandes ao Provedor:
O essencial está explicado no editorial publicado no dia seguinte. Mesmo assim:
a) Não há nenhuma campanha ad hominem. Há investigações sobre factos que chegaram ao conhecimento do jornal (no caso concreto de Sócrates, JAC já investigou um subsídio dado à DECO em condições estranhas, umas escutas telefónicas suspeitas que obteve quando consultou o processo de Luís Monterroso, ex-presidente da Câmara da Nazaré, uma parte da investigação sobre a licenciatura e, agora, nas condições conhecidas, as casas que projectou).
b) Todas essas investigações justificavam-se, pois ou incidiam sobre actos cometidos como membro do Governo ou actos profissionais realizados numa altura em que já era dirigente político, ou levantavam a suspeita de ter beneficiado de uma situação de favor.
c) Foram investigados outros casos relacionados com decisões políticas que não levaram a parte nenhuma e, por isso, não foram publicados.
d) Sendo certo que muitos editoriais do Público foram críticos das políticas de Sócrates, outros saudaram medidas por ele tomadas e que eram muito polémicas (como algumas na educação, na saúde e no domínio das finanças públicas).
e) O único perfil de fôlego realizado no Público foi escrito pelo mesmo jornalista que investigou o caso da licenciatura, e, na altura, alguns comentadores da blogosfera consideraram-no ‘hagiográfico’.
f) Há muito mais exemplos, mas seriam redundantes.
A forma como Sócrates e Costa reagiram às revelações do Público é nova em Portugal mas habitual noutros países. De uma forma geral, visa intimidar os jornalistas e fazê-los quase sentirem-se culpados antes de publicarem o que quer que seja. Desta vez aquelas reacções foram acompanhadas por dezenas de mails, a esmagadora maioria deles anónimos, quase todos escritos no mesmo tom e utilizando os mesmos argumentos, que foram enviados para a jornal, incluindo para um endereço que os faz chegar a todos os jornalistas.
Nesta campanha foi sistematicamente utilizado um argumento que os próprios sabem ser falso – que tudo seria uma consequência de a Sonaecom ter perdido a OPA sobre a PT –, como me foi reconhecido pessoalmente por um deles. Isso não inibiu os seus assessores de telefonarem para as redacções dos jornais, rádios e televisões nos termos que foram descritos pelo Expresso por ocasião da licenciatura.
O meu estilo pessoal como editorialista pode ser contestado, mas todos os líderes políticos recentes têm, digamos assim, razões de queixa. É verdade que considerei, depois de uma entrevista que deu ao Expresso, que Sócrates era um ‘político de plástico’. Mas também acusei Paulo Portas de populismo a raiar a xenofobia, Durão Barroso de ser tão fraco que ‘nunca chegaria a primeiro-ministro’, Santana Lopes de irresponsabilidade, Marcelo Rebelo de Sousa de não ter resistido à tentação do lacrau, Alberto João Jardim de ser um tiranete e por aí adiante. Fi-lo quando entendia que isso se justificava, e o único que fez queixa-crime foi Alberto João Jardim, tendo eu sido absorvido.
Os políticos, todos eles, têm de se habituar à crítica e ao escrutínio público. Mesmo a críticas eventualmente injustas e erradas. Responder-lhes com declarações de guerra é, a meu ver, intolerável por visar coagir os jornalistas e isolar as vozes críticas.’