Thursday, 28 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

Joaquim Vieira

‘O vídeo-chat junta-se ao telemóveis, às sms, ao messenger, ao Facebook ou ao Skype com símbolos de uma nova geração que dois autores invocam em simultâneo

A queixa vem hoje de um jornalista, Hugo Gonçalves, acerca de uma colaboração que fez para a edição de Janeiro do Lux Frágil, mensário gratuito editado por uma discoteca de Lisboa:

‘No dia 27 de Novembro enviei um texto por email, com o título ‘O Elogio da Crise’, ao editor do jornal do Lux, Pedro Fradique. O editor resolveu mostrá-lo a alguns amigos e colegas de profissão – entre eles estava o jornalista do PÚBLICO Vítor Belanciano. (…) Queria, segundo me disse, partilhar o artigo e saber as opiniões dos seus colaboradores e amigos sobre o mesmo.

No dia 13 de Dezembro, uma crónica na pág. 3 do P2, escrita por Vítor Belanciano [‘Larguem o ecrã’], começava assim: ‘Somos a geração pós-revolução. Não estamos no top de preferências dos que lutaram pela liberdade. Não temos ideais, dizem-nos. Somos os doutores que queriam que fôssemos, replicamos. Deram-nos TV a cores e jogos de computador. Nunca estamos sozinhos. Ele é telemóveis, SMS ou Skype. (…) Somos guardiões do lema pensar global, agir local’.

Um dos parágrafos do meu texto: ‘Nós, os que nascemos depois do 25 de Abril, nunca tivemos uma causa geracional, metemos nojo aos colunistas que lutaram pela liberdade, somos os doutores e engenheiros que queriam que fôssemos. (…) Nós, os filhos da pós-revolução, crescemos com televisões a cores, com jogos de computador, com os vídeoclips da MTV a açucarar-nos a vida. Nunca estamos sozinhos – os telemóveis, as sms, o messenger, o facebook. Recebemos o conforto que faltou aos nossos pais. (…) Queremos ser intérpretes do aforismo moderno: pensa globalmente, actua localmente.’

(…) Sim, somos vulneráveis às palavras e às ideias que absorvemos e digerimos e processamos. Porém, e ainda que os textos abordem claramente temas distintos, no caso do parágrafo em questão não se trata de vulnerabilidade, mas de cópia: a cadência, a ordem das palavras, a ideia subjacente e até as imagens usadas para ilustrar tal ideia. Não esquecendo que Vítor Belanciano recebeu o meu texto (…) dias antes de publicar a sua crónica’.

Hugo Gonçalves esclarece que, duas semanas antes de escrever ao provedor, reclamara junto do director do PÚBLICO acerca deste alegado plágio de um escrito seu, mas sem qualquer reacção. E conclui:

‘O meu texto foi publicado após a crónica de Vítor Belanciano No entanto, tenho testemunhas e emails que provam que o meu artigo foi escrito muito antes do texto do PÚBLICO. Não gostaria que os leitores pensassem que fiz um exercício de copy/paste [copiar/colar no computador]. É desagradável. Lamento que o PÚBLICO não se tenha preocupado em esclarecer este problema’.

O provedor solicitou esclarecimentos a Vítor Belanciano, perguntando-lhe preliminarmente se confirmava a leitura prévia do texto de Hugo Gonçalves, o que assumiu:

‘Nunca fugi – nem ninguém deste jornal – a esta questão. Claro que li o texto de Hugo Gonçalves. Mais: instiguei à sua publicação a quem me pediu opinião. Por isso, recuso insinuações que poderia passar-me pela cabeça dizer que não li o referido texto’.

O provedor nada insinuou a esse respeito, apenas perguntou, no exercício normal de funções, pelo que desconhece a quem Vítor Belanciano possa referir-se. Quanto à explicação da similitude entre o seu texto e o outro, Vítor Belanciano adianta:

‘A ideia, o conceito, a essência, dos dois textos é totalmente diferente. O meu reflecte sobre a retórica tecnológica, como se fosse a única imagem de um futuro possível. Algumas influências na sua feitura foram teorias de Zygmunt Bauman (a geração do ‘ter’ e não do ‘ser’), análises de James Howard Kundler (a confiança cega na tecnologia e o estilo de vida ocidental ter que mudar face à escassez de recursos energéticos) e texto de Simon Jenkins sobre haver cada vez mais pessoas a consumirem espectáculos ao vivo, porque não há comunidades virtuais que os substituam. O texto de Hugo Gonçalves é sobre o estado de Portugal e como a crise pode ser, afinal, a salvação.

A minha crónica está escrita num registo formal que é o meu: conciso, directo, frases curtas, dinâmico, cadenciado.

Isso não significa que não existam cinco frases no princípio da minha crónica com semelhanças a frases do outro texto, que, em alguns casos, na sua declaração, Hugo Gonçalves tira de contexto, recorrendo a parêntesis. Adiante. Não vou estar a discutir ‘vírgulas’, que é o que, nestes casos, pode suceder.

Digo, frontalmente, que sim, é plausível que a leitura, alguns dias antes, do texto de Hugo Gonçalves possa ter sugestionado essas minhas frases. Fui um pouco incauto? Talvez.’

E depois, à guisa de doutrina para um gesto que olha com aparente displicência, Vítor Belanciano elabora uma tese justificativa:

‘De qualquer forma, a ideia que atribui forma a essas frases está banalizada e é do senso comum. (…)

Eu próprio, em crónicas anteriores, utilizei alusões parecidas para reflectir o mesmo: ‘Podemos recorrer a astúcias e pequenos gestos quando estamos entre desconhecidos sinalizando a intenção de permanecermos afastados, como a utilização indiscriminada do telemóvel – como se através dele obtivéssemos consolo de estar em comunicação, sem o desconforto que o verdadeiro contacto reserva’. (‘Viver por opção no gueto’, 13-08-07); ‘Fazer parte de comunidades ou universos virtuais como o Second Life, de dia, ou passear no Chiado de iPhone no ouvido, à noite. Cada um pode criar o seu mundo artificial’. (‘Coexistir’, 20-07-08).

Sei perfeitamente que existem sensibilidades diferentes para conviver com estas questões. Entendo a susceptibilidade de Hugo Gonçalves. Muitos outros partilham do mesmo, certamente. Respeito-o. (…) Essa não é a minha visão, no entanto. (…) Enquanto alguém que pensa sobre estes factos, queria deixar apenas a seguinte observação:

Nenhum texto, ou obra, é puramente original, feito exclusivamente por um sujeito, livre das interferências de outras produções. Citações, referências, alusões, apropriações e ecos – conscientes ou inconscientes – encontram-se, cada vez mais, num mundo intrincado de signos. Mais do que isso, são a própria condição do acto criativo. Ter uma voz singular implica adoptar e abraçar filiações, comunidades, discursos. Inventar não é criar do nada, mas do caos.

Todos o sabem, poucos o aceitam. Tenho a sensação de que hoje grassa uma espécie de arrogância cultural, e uma hipocrisia que lhe está subjacente, quando se fala nestes assuntos. Com o fluxo ininterrupto de informação vinda de todos os lados, estas questões são – e serão ainda mais no futuro – relevantes, implicando rever as formas pelas quais nos relacionamos com elas’.

Por louvável que seja a franqueza de V.B. ao admitir influências do texto de Hugo Gonçalves, é muito mais problemático que o encare como natural. Vítor Belanciano constatava na crónica em causa haver quem acusasse a sua geração (de que se assume como porta-voz) de já não ter ideais. O provedor, que não sabe se é isso que ele próprio pensa, entende de forma diferente – que continua a haver ideais, mas não necessariamente coincidentes com os das gerações anteriores. Em todo o caso, estava convencido de que a não apropriação do trabalho intelectual alheio, mais conhecida como recusa do plágio, permanecia como ideal transmitido de geração para geração.

Conviria a Vítor Belanciano ter a consciência de que o código deontológico da sua profissão estipula que ‘o jornalista deve combater (…) o plágio como grave falta profissional’ e de que trabalha para um jornal cujo Livro de Estilo é taxativo a este respeito: ‘O plágio é terminantemente proibido no PÚBLICO’.

Poder-se-ia pensar que a proximidade de ideias, a semelhança da exposição e a coincidência de vocábulos entre Hugo Gonçalves e Vítor Belanciano não teriam passado de uma bizarra coincidência em milhões de diferentes combinações lexicais à volta do mesmo tema – certamente mais rara do que ganhar o Euromilhões. Mas, tendo lido o outro texto antes de escrever o seu, a Vítor Belanciano não poderá ter escapado tudo isso, pelo que lhe competiria fugir à inevitável comparação entre dois discursos tão concordantes.

Sendo certo que a nova ecologia comunicacional poderá obrigar a repensar o conceito de direito de autor, como alega em sua defesa, Vítor Belanciano estava a escrever, com a sua própria assinatura, para um órgão de informação tradicional, onde ainda imperam (e imperarão) os velhos valores que obrigam a atribuir devidamente às respectivas fontes todas as informações e expressões recolhidas algures.

Remata o jornalista:

‘Alguém me perguntava: ‘E se fosse ao contrário?’ Respondi – com exagero, decerto – que todas as semanas vejo isso acontecer com textos meus. (…) Todos são bem vindos às minhas considerações e histórias. No limite, elas nunca foram apenas minhas, em primeiro lugar, façam favor de fazer delas o que quiserem’.

Sendo estimável, a generosidade de Vítor Belanciano não o autoriza a abusar da generosidade dos outros.’