‘O provedor regressa à cobertura do PÚBLICO ao caso Freeport, envolvendo a figura do actual primeiro-ministro numa controversa concessão de construção de um outlet na Zona de Protecção Especial (ZPE) do Estuário do Tejo, em Alcochete, a três dias das eleições legislativas de 2002, quando José Sócrates sobraçava a pasta do Ambiente.
O leitor H.C. Mota detectou contradições na notícia ‘Alteração da ZPE esteve na gaveta um ano e serviu para o Freeport’, publicada em manchete na edição de 28 de Janeiro, cujo subtítulo rezava: ‘Projecto de resolução do Conselho de Ministros nunca foi aprovado’. Na sua reclamação, H.C. Mota chamava a atenção para o que dizia o texto, da autoria do jornalista José António Cerejo, nas págs. 2/3: ‘No mesmo dia 1, o presidente do ICN [Instituto de Conservação da Natureza] dá o seu ‘concordo’ e, também nesse dia, Pedro Silva Pereira aprova a proposta de decreto e remete-a ao gabinete de Sócrates ‘tendo em vista o agendamento para reunião do Conselho de Ministros’. Treze dias depois, (…) o decreto é aprovado’.
Da leitura da notícia, verifica-se porém que se trata de dois projectos diferentes. Aquele que nunca terá ido a Conselho de Ministros dizia respeito à alteração do perímetro urbano de Alcochete por forma a abranger o espaço do futuro Freeport, enquanto o que foi aprovado alterava, com idênticos efeitos, a área da ZPE. Minudências cujo razão política, se existiu, não é descortinada na notícia e de cuja colocação em subtítulo de manchete se acaba por perder o sentido… De qualquer modo, não propriamente uma incorrecção factual.
Outra incongruência, segundo H.C. Mota, é que ‘a notícia não confirma o título’, ou seja, o texto não provava a intenção de a alteração da ZPE servir para a construção do Freeport. Mencionava-se com efeito um documento do ICN explicando que um dos objectivos do diploma em questão era ‘permitir uma ‘intervenção urbanística requalificadora da área’ das fábricas desactivadas, incluindo a Firestone [local do futuro Freeport]’, mas, como a referência a esta unidade industrial já não surgia entre aspas, ficava-se sem se saber se o papel indicava explicitamente essa área ou se se tratava apenas uma interpretação do jornalista.
Explicou José António Cerejo ao provedor: ‘Sou eu que digo que o documento diz, portanto não deduzo, que se trata de fábricas desactivadas, incluindo a Firestone. (…) Os documentos, até por razões técnicas, entre outras de espaços e de concordâncias gramaticais, não podem ser transcritos na íntegra. (…) O que [nele] está escrito (…) é que se propõe a revisão da ZPE ‘no sentido de…’, elencando-se depois seis objectivos, um dos quais é ‘recuperar áreas com localizações de unidades industriais pré-existentes […], com medidas de compensação ambiental e uma intervenção urbanística requalificadora da área’ (…). Na página anterior fala-se de algumas questões ‘que urgem ser abordadas para a redefinição’ dos limites da ZPE, sendo que uma delas é a das unidades industriais cuja exclusão da ZPE é proposta. E logo a abrir diz-se que, ‘adjacentes à EN 119, existem três unidades fabris – [entre elas] a Firestone, actualmente desactivada […] – que se encontam incluídas nesta ZPE’. É a estas e não a quaisquer outras unidades industriais, até porque não havia outras dentro da ZPE, que se refere a ‘análise final’ do documento sobre o qual Pedro Silva Pereira mandou seguir para o Conselho de Ministros o projecto de decreto-lei a ele anexo’.
Assunto esclarecido, portanto, embora, na perspectiva do provedor, e a bem do rigor que a matéria impõe, a notícia devesse indicar que o documento do ICN fazia uma menção explícita à fábrica em causa.
Uma outra notícia (mas não no PÚBLICO) a suscitar reacção foi a de que José António Cerejo assumira a categoria jurídica de assistente no processo Freeport. ‘Foi preciso ver noutros jornais’, constatou o leitor Sérgio Brito, interrogando: ‘O PÚBLICO não tinha obrigação de informar os leitores que um seu jornalista (…) se tinha constituído como assistente num processo em que não é queixoso nem acusado? Na história do jornalismo em Portugal quantas vezes é que esse desiderato já se verificou? Não estará em causa a habilidade de acesso ao processo para se tornar ‘a garganta funda’ – a confidencialidade da fonte, o eufemismo habitual… – a que os ‘jornalistas de investigação’ recorrem?’
Sobre a iniciativa, o provedor inquiriu o director do PÚBLICO, que explicou: ‘A lei permite que qualquer cidadão se constitua assistente em processos relativos a suspeitas de corrupção. O assistente passa a ter acesso ao processo dentro dos limites impostos por quem dirige a investigação. (…) Também se obriga a colaborar com o Ministério Público caso possua provas importantes para o decorrer das investigações. (…) Face ao pedido desse jornalista para se constituir assistente, entendi que devia autorizar, por duas razões: primeiro, porque colaborar com a investigação judicial em casos de interesse público não é incompatível com a profissão de jornalista nem pressupõe um qualquer juízo apriorístico sobre a culpabilidade de quem está a ser investigado; segundo, porque ao ter possibilidade de aceder a documentos em segredo de justiça o jornalista fica obrigado a esse segredo de justiça, mas isso não o impede de procurar seguir pistas que não tenham sido seguidas pela investigação. A relação com o segredo de justiça fica mais clara para o leitor, e o jornalista já não pode proteger-se alegando o sigilo das suas fontes se o violar, o que fará com que trabalhe de forma ainda mais responsável e ponderada. A relação com o Ministério Público também é mais clara: o assistente é alguém que quer colaborar com a justiça no esclarecimento da verdade (…). Não é a primeira vez que jornalistas pedem para se constituírem assistentes em casos como o actual (…)’.
Do ponto de vista ético, nada obsta, com efeito, a que um jornalista colabore com a justiça (embora se mantenha vinculado ao princípio do sigilo profissional quanto à confidencialidade das fontes). Mas existe nesta explicação um aspecto pouco claro: o compromisso principal do jornalista deixa de ser com os leitores para passar a ser com o aparelho judicial. Ou seja, há informações a que ele terá acesso mas não poderá noticiar porque legalmente está sujeito ao segredo de justiça (e se, de acordo com as palavras um tanto ambíguas do director, não encontrar ‘pistas que não tenham sido seguidas pela investigação’). Ora, um dos princípios do jornalismo independente consiste em não guardar notícias na gaveta, que é o que vai acontecer com Cerejo a partir do momento em que se tornar assistente no caso Freeport.
Quanto ao facto de o PÚBLICO não ter informado os leitores desta circunstância, justifica José Manuel Fernandes: ‘Até à data, o jornalista não teve qualquer acesso ao processo, não o tendo solicitado sequer. Só no momento em que isso sucedesse a forma como esse jornalista passaria a seguir o processo deveria ser tornada pública, logo noticiada no jornal (…). A ideia de que a informação devia ter sido dada antes resulta de um equívoco sobre o estatuto do assistente em casos como este. Parte do princípio de que o assistente é vítima ou acusação, quando, em sentido estrito, não é isso que sucede. Só em sentido lato poderemos considerar que se apresenta como vítima, pois, de acordo com o espírito da lei, e que justifica a possibilidade de qualquer cidadão se constituir assistente em casos como este, todos os cidadãos são vítimas de um acto de corrupção de que possa ter resultado um prejuízo público, como será o caso se se provar que houve corrupção e prejuízo público’.
Um outro leitor, sob anonimato, pergunta: ‘Como se deve classificar o texto de Clara Viana publicado na edição de 14 de Fevereiro [‘O mundo pequeno do caso Freeport’, págs. 8/9]? É mesmo jornalismo? De referência?’
O trabalho mencionado traça o perfil de vários protagonistas judiciais envolvidos no processo, mencionando cruzamentos nas suas carreiras pessoais, profissionais e políticas, mas não extraindo daí qualquer conclusão. Escreve o leitor: ‘E por que não ousa a jornalista (…) tirar as conclusões com coragem? Porque teme as consequências, limitando-se cobardemente a chafurdar com insinuações? Mas não há no PÚBLICO uns seniores que ensinem esta gente?’
Não encontra aqui o provedor, contudo, motivo de reparo. O texto limita-se a transmitir informação que certamente será do interesse dos leitores, para melhor conhecerem os actores que do lado da justiça se movimentam nesta peça chamada Freeport.
CAIXA:
Da importância de um ‘de’
Reclama a leitora Carmen González Moura: ‘Como portuguesa descendente de uma família espanhola radicada há muitos anos em Portugal, não tive outro remédio se não habituar-me com um encolher de ombros ou voltando as costas à boçalidade anti-espanhola que continua a lavrar em Portugal, das elites ao povo. Mas seria de esperar de um jornal que faz um esforço para ser civilizado um mínimo de decência – na linha do respeito pelos direitos humanos, com que enchem a boca quando são os outros a pôr o pé em ramo verde. No passado dia 12 de Fevereiro, o PÚBLICO fez um título [pág. 6] usando o ditado que os portugueses gostam de usar quando falam dos espanhóis, a propósito ou a despropósito: ‘Espanha: Nem bom vento, nem bom casamento’. Li a notícia para ver se havia alguma razão que pudesse justificar o título. Não havia. O PÚBLICO não perceberá que desta forma perpetua e justifica as visões deturpadas dos outros que estão na base da xenofobia?’
Em Portugal circula de facto este ditado xenófobo, decorrente de circunstâncias históricas de todos conhecidas: ‘De Espanha, nem bom vento nem bom casamento’. O editor apenas o parafraseou para invocar não o que vem de Espanha, mas o que se passa em Espanha: uma turbulência entre a hierarquia católica e o governo a propósito, entre outras coisas, da legalização dos casamentos homossexuais. No caso, a preposição ‘de’ foi a fronteira entre o que seria de facto um título de mau gosto (se ela lá figurasse) e um outro perfeitamente admissível (como sucedeu).’