Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Joaquim Vieira

‘Tem-se equacionado que atitude deve um jornalista assumir se tiver acesso às escutas das ligações telefónicas entre Armando Vara e José Sócrates realizadas pelas autoridades judiciais no âmbito da investigação do processo ‘Face Oculta’. O provedor gostaria de interromper a sua análise de casos pretéritos do PÚBLICO para se debruçar sobre esta circunstância eventualmente vindoura, neste ou noutro órgão de informação.

O ambiente é de enorme pressão psicológica sobre os jornalistas no sentido de que devem abster-se de qualquer referência ao conteúdo das escutas, porquanto: a) constituem intromissão na vida privada dos protagonistas; b) o titular de um órgão de soberania deve ter direitos de confidencialidade superiores aos de outros cidadãos; c) trata-se de uma violação do segredo de justiça e de fugas de informação cirurgicamente dirigidas; d) as superiores instâncias judiciais declararam a invalidade e até a destruição dessas gravações, que terão sido efectuadas ilegalmente por carecerem da adequada caução judicial; e) e, para reforçar, o Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República aprovou na semana que findou um parecer impedindo o acesso dos jornalistas às escutas em processos judiciais. Sucessivos políticos (sobretudo da área governamental, mas não só), comentadores e até especialistas em ética jornalística têm antecipado a catástrofe na revelação das escutas a Vara e Sócrates, como se representasse a destruição do Estado de direito. Nessa argumentação, questões processuais como as garantias dos arguidos ou a preservação do segredo de justiça sobrelevam o apuramento da corrupção que parece minar o Estado, do tráfico de influências entre políticos e empresários ou da apropriação perversa dos negócios públicos para enriquecimento particular ou partidário – matérias apresentadas mesmo como ‘comezinhas’. A mensagem subliminar dos políticos aos jornalistas é clara: portem-se com juízo, se não caímos em cima de vocês com todos os meios ao nosso dispor (e, ao que parece, retirando também a colocação de publicidade estatal). O respeitinho, na nossa sociedade, ainda continua a ser uma coisa muito bonita.

Mas afinal que têm os cidadãos direito a saber? A liberdade de imprensa (no sentido lato de liberdade de informação) está definida, na sua amplitude e nos seus limites, por uma série de articulados legais que variam de país para país, mas antes disso trata-se de um conceito filosófico que representa uma aquisição da nossa civilização. Nos casos-limite em que se julga eventuais abusos de liberdade de imprensa, a margem de entendimento e decisão dos magistrados é extremamente ampla e subjectiva, e muitas vezes nem sequer consensual entre eles. A jurisprudência interna está mais vocacionada para fazer uma leitura literal da letra da lei, mas existe hoje a instância supranacional do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, que atribui ao conceito a categoria filosófica atrás referida, tendo já revogado diversas sentenças dos tribunais portugueses tomadas contra jornalistas ou outros cidadãos fazendo uso da sua liberdade de expressão.

Isto não obsta a que a classe política em Portugal, desde que disponha do poder necessário, se sinta atraída por tomar medidas limitativas da liberdade de informação. Basta analisar os estatutos da Entidade Reguladora para a Comunicação Social, aprovados em sede parlamentar pelos partidos do chamado arco governativo (PS, PSD e CDS/PP). E o PS foi particularmente agressivo neste campo quando dispôs da anterior maioria absoluta. Sem fazer um processo de intenções às restantes forças parlamentares (BE e PCP), o elenco de formações políticas ou regimes além-fronteiras que apoiam ou a que habitualmente estão ligados não permite concluir que possuam melhor entendimento deste valor.

É claro que a liberdade de imprensa não é absoluta, total e ilimitada. Na sua decisão de informar, o jornalista tem de colocar muitas vezes num prato da balança os direitos individuais (sobretudo o direito à reputação e ao bom nome e o direito à preservação da intimidade da vida privada) e no outro o direito colectivo ao conhecimento das matérias de interesse público. A opção final terá de ser sempre do próprio jornalista, já que não pode consultar um tribunal para cada notícia que publica, e é óbvio que por vezes envolve um risco. Mas quem não quer correr riscos no jornalismo deve mudar de profissão. Ao longo da sua carreira de jornalista, este provedor foi processado judicialmente quase duas dezenas de vezes (inclusive por violação do segredo de justiça), mas nunca foi condenado, sequer em primeira instância. Rotina profissional, apenas.

Recuemos no tempo, até 1971. Em 13 de Junho desse ano, o diário norte-americano The New York Times começou a publicar uma série de artigos dando a conhecer o conteúdo de um estudo confidencial do Departamento de Defesa norte-americano sobre o envolvimento dos EUA na guerra da Indochina, com a revelação de estratégias bélicas antes mantidas secretas. Para lá do escândalo político que se desencadeou, falou-se em ‘traição nacional’, já que os americanos continuavam envolvidos em combates no Vietname. Os próprios advogados do New York Times estavam divididos sobre se o jornal deveria ou não divulgar documentos com o carimbo ‘top-secret’ e tanto o Presidente (Richard Nixon) como o Attorney General (um misto de ministro da Justiça e Procurador Geral da República) tentaram debalde convencer o diário a suspender a saída dos artigos, para depois obterem uma injunção judicial forçando a sua interrupção, que foi acatada. A cena repetiu-se logo a seguir com The Washington Post, que porém não obedeceu à ordem de suspensão emitida pelo tribunal. A querela dos dois jornais subiu à apreciação do Supremo Tribunal de Justiça, que em 30 de Junho, por maioria (6-3), deliberou que as injunções judiciais eram inconstitucionais, já que constituíam uma limitação à liberdade de imprensa. (Mais do que o Watergate, que ocorreria pouco tempo depois, o caso dos ‘documentos do Pentágono’ é considerado o acto fundador do moderno jornalismo de investigação).

Em nome do direito dos cidadãos a serem informados, o jornalismo pode revestir-se por vezes de aspectos que têm a ver com a desobediência civil. Voltando às escutas de Sócrates, os jornalistas, na opinião do provedor, só teriam uma coisa a fazer: destacar, se existem, os aspectos em que, no seu entender, o interesse público pesa mais do que a privacidade dos protagonistas, e trazê-los ao conhecimento da opinião pública. A mensagem aos políticos devia ser igualmente clara: esta é parte da verdade sobre a governação, que a todos os cidadãos diz respeito e que por isso têm o direito de conhecer; se quiserem, processem – veremos quem ganha.’