Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

José Carlos Abrantes

‘‘Senhor provedor,
Não posso deixar de considerar lamentável o título do artigo dado à estampa dia 18 de Maio, ‘Advogados não cumprem normas deontológicas’. Que haja advogados que não as cumpram, que esses advogados sejam uma boa parte da classe, isso não autoriza, todavia, a generalização que foi feita. Para quem, como eu, exerce a advocacia sozinho, a tempo inteiro, há mais de uma quinzena de anos, que respeita escrupulosamente o Estatuto e ainda que haja quem diga – como o sr. bastonário – que ele está desactualizado, a inserção de tal título é abusiva e ofensiva da dignidade de todos aqueles que diariamente, pelos corredores e salas de audiências dos tribunais deste País, fazem por honrar a advocacia, servem os cidadãos e se recusam a embarcar na mediatização e mercantilização generalizada da profissão. Títulos como o que saiu apenas contribuem para agravar o actual estado de coisas e diminuir a imagem de cada um dos advogados que vai regularmente a tribunal, calcorreia as repartições, assegura o patrocínio oficioso e cumpre o Estatuto com dedicação, profissionalismo e sentido cívico. Sérgio de Almeida Correia

As relações entre os media e a justiça são hoje centrais na vida social. Sendo a justiça um campo que assegura (deve assegurar) os direitos fundamentais dos cidadãos, como o respeito pela vida, a liberdade, o direito de livre expressão e sendo o jornalismo um campo que age também nesses domínios, não espanta que tais interacções se sucedam e se tornem mais delicadas, mais constantes, mais complexas.

Neste caso, um leitor, advogado de profissão, indigna-se, não pela notícia que divulga os resultados de um inquérito da Ordem dos Advogados, mas pelo título ‘Advogados não cumprem normas deontológicas’, de uma peça da jornalista Sofia de Jesus, assinada com Paula Carmo. Este artigo apareceu na edição de 18 de Maio e teve chamada de primeira página, a quatro colunas, podendo daí inferir-se a importância que o DN lhe quis atribuir. De facto ao inquérito terão respondido mais de nove mil profissionais, 50% dos inscritos, segundo a notícia (logo existirão actualmente mais de 18 mil advogados em Portugal). E, não sendo os advogados os únicos actores na justiça, são dela parte importante.

Confesso que inicialmente me senti perplexo com a reclamação, pois a primeira página titulava ‘Maioria dos advogados admite violação das regras’. Mas, de facto, na página 22, o título fora alterado e a palavra maioria, tinha desaparecido. Questionada a jornalista, esta justificou: ‘A elaboração de um título de uma notícia tem como objectivo chamar a atenção do leitor para o conteúdo da mesma, da forma mais informativa possível. O que acontece com frequência é que o espaço destinado ao título não nos permite desenvolver essa informação ao pormenor, deixando–nos muitas vezes confinados à escolha de uma ‘ideia forte’ que resuma o cenário descrito pela notícia.’ E depois de precisar que colocou um antetítulo, acaba por reconhecer que ‘fora do contexto da peça, o título em causa (…) poderá ser demasiado generalista’.

Tenho sorte (diz-se muitas vezes que os jornalistas não reconhecem os erros), pois a autora da título reconhece que este, isolado, é demasiado generalista, ou seja, envolve a totalidade da classe e não uma parte da classe, como o título de primeira página correctamente fizera. Não posso porém concordar com o espaço reduzido como justificação condicionante da escolha do título: é que a peça interior é feita a quatro colunas, a da primeira página também e o tipo de letra é igual ou muito semelhante. Mesmo que fosse diferente haveria alternativas (‘Maioria dos advogados não cumpre deontologia’, por exemplo).

Outro aspecto em que a lógica do jornalista pode colidir com a lógica do leitor é a de considerar que ‘a leitura do título de um artigo nunca se pode substituir à leitura desse mesmo artigo’. Os leitores ao lerem um jornal têm estratégias de economia e de apropriação, muitas vezes centradas na leitura de um título aqui, de um artigo inteiro mais à frente, de um destaque, de olhar apenas uma foto. E decisivo é que ‘maioria dos advogados’ não é o mesmo que ‘advogados’ (parte e todo). Foi isso que motivou a carta do leitor e Sofia Jesus concorda. ‘Ao leitor, agradeço desde já a chamada de atenção’, e afirma que ‘nunca quis pôr em causa o trabalho dos advogados portugueses, nem tão-pouco ‘ofender a sua dignidade’‘.

Bloco-Notas

UM LIVRO – A crónica anterior, Palavras rebeldes, bem como o problema hoje analisado, fez-me voltar a folhear um livro marcante que, julgo, não foi traduzido em português: Austin, J. L., Como Fazer Coisas com as Palavras (em inglês How to do Things with Words, Oxford University Press, 1962). Os franceses traduziram para Quando dizer, é fazer (Quand dire, c'est faire, Editions du Seuil, 1970). Este é um livro que marca a abordagem performativa da linguagem, ou seja, uma abordagem em que a frase (enunciação) leva à execução de uma acção. A linguagem não é apenas uma estrutura linguística nem uma mera descrição. Dizer sim num casamento significa, por exemplo, acordo para uma tranformação na vida pessoal e o ‘declaro-vos marido e mulher’ pronunciado pelo sacerdote ou pelo notário produz o efeito de os nubentes mudarem o estado civil. No jornalismo, frequentemente, também as palavras não são apenas descritivas: também têm esse efeito performativo, o que as torna particularmente delicadas e exige aos jornalistas um fino bom senso e grande sensibilidade.

OUTRAS CRÓNICAS – O reconhecimento dos erros pelo New York Times (NYT) arrastou algumas críticas de leitores de outros jornais americanos que publicaram artigos, agora reconhecidos pouco fiáveis. Gina Lubrano, representante dos leitores (reader's representative) do The San Diego Union Tribune escreve na sua última crónica que alguns jornais regionais, para fazerem a cobertura nacional ou internacional, estão dependentes de outras publicações como o NYT. Depois de descrever os casos em que o seu jornal ‘colou’ ao jornal de referência, Gina conclui que, quando as peças vêm do Times ou da Associated Press, os editores não podem questionar os repórteres de forma directa. Terão que confiar que os editores que mexeram na estória se tenham colocado as boas questões, diz. Apesar disso o que se passou mostra ser preciso mais cepticismo, é a sua conclusão.

CORRECÇÕES – Por lapso, no texto da semana passada não eram indicadas as fontes citadas. Para os ombudsmen canadianos socorri-me dos relatórios anuais 2001-02 que estes fazem para a Radio Canada. O texto da documentalista pode encontrar-se em Múrias, Maria João Beça in Abrantes, J.C., Coimbra, C. e Fonseca, T., (Orgs), A Imprensa, a Rádio e a Televisão na Escola, Lisboa, Instituto de Inovação Educacional, 1995.
A segunda correcção respeita a um justo reparo de um leitor sobre o facto de o NYT ter apenas um ombudsman (David Okrent, aliás um public editor, e um adjunto, Arthur Bovino), e não dois, como então referi. Ambos estiveram no encontro anual da Organisation for News Ombudsmen que motivou a crónica.