“O PÚBLICO aceita com frequência convites para viagens em que as despesas de deslocação ou alojamento ficam a cargo das instituições ou empresas que fazem o convite. A publicação dos trabalhos jornalísticos resultantes dessas viagens é acompanhada de uma nota final, em que se assinala que o jornal ‘viajou a convite de…’, seguindo-se a identificação da entidade em causa. É uma norma prevista no Livro de Estilo, que também determina que os jornalistas do PÚBLICO não aceitam convites que ‘possam condicionar a sua independência’.
A regra é justificada pela transparência na relação com os leitores, mas não basta para evitar efeitos perversos. Qualquer convite é, por definição, o convite de uma parte interessada, o que conduz facilmente a questão das viagens pagas por entidades externas ao jornal para um terreno escorregadio, em que cada decisão concreta deve ser ancorada no interesse dos leitores, na salvaguarda da independência e nos valores da ética profissional.
Abordo hoje este tema na sequência das queixas que recebi de vários leitores a propósito da reportagem intitulada ‘A vida dos que trocaram Tindouf por Marrocos’, publicada na edição de 22 de Maio. Os jornalistas Sofia Lorena (texto) e Nelson Garrido (fotos) deslocaram-se a à cidade de Dakhla, no território do Sara Ocidental sob ocupação marroquina, numa viagem ‘a convite da embaixada de Marrocos’ em Lisboa. Ali, a repórter do PÚBLICO recolheu, em encontros organizados pelas autoridades de Rabat, declarações do governador da cidade e de sarauís regressados dos campos de refugiados na Argélia, coincidentes na defesa das posições oficiais marroquinas e na crítica à Frente Polisário, que luta pela independência da antiga colónia espanhola.
A primeira reclamação chegou do leitor Eduardo Costa Dias: ‘ (…) Escrevo para, por um lado, protestar contra a unilateralidade do texto, e, por outro, perguntar se acha eticamente correcto um jornalista aceitar, ou alguém o mandar aceitar, viajar ‘a convite da embaixada de Marrocos’ para fazer uma reportagem acerca de um assunto tão politicamente complexo e delicado como é o conflito do Sara Ocidental’. No mesmo tom, Raul Curvelo sustenta que a reportagem reproduz ‘as posições que têm sido reiteradas por Marrocos’, pergunta se ‘quando o leitor abre o PÚBLICO não tem o direito ao contraditório’ e, ‘sobre a questão ética’, diz não saber se a referência ao convite a atenua ou agrava. Um outro leitor, A.G. Lourenço, comenta que à jornalista ‘deram a ver umas coisas sobre as quais queriam que escrevesse’ e critica o texto em causa no plano da ‘isenção’ e da ‘credibilidade’, classificando-o como ‘‘publi-reportagem’’ ou ‘encomenda paga’.
Há aqui duas questões diferentes: a crítica ao conteúdo da reportagem e a censura das condições em que ela foi efectuada. Considero que a primeira é, no essencial, injusta e que a segunda levanta um problema real, que exige reflexão.
Uma leitura atenta do texto assinado por Sofia Lorena mostra que não estamos perante uma peça tendenciosa. A jornalista enquadra correctamente a reportagem no contexto da disputa sobre o Sara Ocidental, e fá-lo sob um antetítulo claro: ‘O conflito visto do lado marroquino’. A peça começa por explicar as perspectivas opostas do governo de Rabat e dos independentistas. Dá conta das perguntas – formuladas a partir das críticas da comunidade internacional à política do Estado ocupante – a que os seus anfitriões se recusaram a responder. Salienta que as declarações do governador de Dakhla representam ‘a defesa da estratégia de Rabat’. Refere os presos políticos no território e a repressão dos protestos independentistas. Um sarauí ‘regressado’ dos campos de refugiados, que se destaca nas críticas à Polisário, é identificado como um ‘funcionário público’ (da potência ocupante), cujas declarações foram ‘traduzidas’ por um representante do governo marroquino. Foi assegurado, em suma, o indispensável distanciamento profissional.
Na explicação que me enviou, Sofia Lorena defende que ‘nem sempre é possível – e muitas vezes nem sequer faz sentido – que o contraditório seja dado [em discurso directo] a propósito de uma situação de disputa ou conflito’. E ilustra essa afirmação recordando, entre outras, as peças que escreveu acerca da greve da fome da activista sarauí Aminatu Haidar, em Dezembro de 2009, ou a recente entrevista que fez, para o PÚBLICO, a um dirigente da Polisário – situações em que ‘não tinha ninguém ali presente que defendesse a posição do Estado marroquino’. Tem razão: é de contextualização que se deve falar nestes casos, com a evocação das posições contraditórias a ser assegurada pela própria jornalista. Cumprido esse dever, o tratamento equilibrado de um determinado tema não pode ser avaliado por uma peça isolada, e sem atenção ao género jornalístico que integra. Por isso considero que Sofia Lorena volta a ter razão quando escreve: ‘Estas pessoas [as que foram ouvidas para esta reportagem] integram a realidade deste conflito – são uma das suas expressões – e considerei pertinente dar conta da sua existência, das suas histórias e opiniões, algo que nunca tinha sido feito nem por mim nem pelo PÚBLICO’.
Dito isto, é verdade que todas as declarações citadas nesta reportagem em concreto se identificam com o conteúdo da propaganda oficial marroquina sobre a questão do Sara Ocidental. E que foram obtidas numa viagem paga e organizada pelo governo de Marrocos. O que significa que foi, para todos os efeitos, um trabalho efectuado em condições restritivas da liberdade e independência dos jornalistas, dando azo às dúvidas dos leitores sobre a sua credibilidade.
Aceitando que essas dúvidas ‘são legítimas’, a directora do PÚBLICO, Bárbara Reis, assegura que ‘aceitar um convite não significa que o jornalista deixe de ser jornalista, ou seja, que não faça perguntas incómodas, não procure diferentes respostas para uma mesma pergunta, ou não tente ver para além do que lhe é mostrado’. Cita o exemplo dos jornalistas ‘que viajam nos aviões fretados pela presidência da República ou por São Bento’, sem que isso lhes retire ‘independência’ – situação que não me parece comparável à aceitação do convite da embaixada de um país envolvido num conflito.
Bárbara Reis reconhece que a aceitação de convites ‘não é o ideal’: ‘Com outros meios gostaríamos de poder definir uma regra semelhante à do New York Times: ‘A nossa empresa paga [sempre] as despesas’’. Sendo as coisas como são, resume a doutrina aplicada no PÚBLICO: ‘Quando recebemos um convite, e definido que não há quaisquer condições ou contrapartidas, avaliamos sobretudo se tem ou não relevância jornalística, se o resultado do trabalho pode ou não ser relevante para o leitor’.
Julgo que, não sendo o único, esse é um ponto essencial a ter em conta numa questão que não é consensual no universo da imprensa de qualidade e sobre a qual gostaria de deixar aqui algumas observações que possam contribuir para um debate mais aprofundado:
– A reportagem, e nomeadamente a grande reportagem sobre os temas fortes da actualidade internacional, deve ser uma das marcas distintivas de um jornal de referência. Um bom exemplo recente foi o da excelente cobertura no terreno, pelos repórteres do PÚBLICO, das revoltas no Norte de África. Sofia Lorena foi um desses repórteres, na Tunísia. O seu trabalho, como o de Paulo Moura no Egipto e na Líbia, deu aos leitores deste jornal um conhecimento da situação que não lhes seria proporcionado – em português – por outros meios. Sabe-se como os actuais constrangimentos financeiros da imprensa dificultam o desejável alargamento da aposta neste género nobre do jornalismo. É compreensível e louvável que a direcção do PÚBLICO procure, como já foi noticiado, patrocinadores externos para viabilizar essa aposta. E é necessário, em nome da independência e da credibilidade, que tais apoios permaneçam desligados da escolha e da natureza dos trabalhos jornalísticos que venham a tornar possíveis.
– Reportagens ‘a convite’ são outra coisa. Mesmo com todas as garantias de que não são aceites se puderem ‘condicionar a independência’, tais propostas só deveriam ser consideradas numa lógica de autonomia da iniciativa editorial, determinada por critérios de relevância, oportunidade e agenda própria. Essa autonomia e a própria gestão criteriosa de recursos aconselharão que o jornal só aceite convites para viagens pagas por terceiros quando se trate de deslocações que se enquadrem naturalmente nas suas prioridades de agenda, mas para as quais não haja disponibilidade orçamental. Nem sempre será assim.
– Quem convida move-se por interesse próprio. Seja a empresa que paga uma viagem para a apresentação de um produto, seja o eurodeputado que chama um redactor a Bruxelas para publicitar um projecto, seja a embaixada que quer dar novo fôlego à propaganda do governo que representa. Poderia multiplicar os exemplos. Sendo o espaço noticioso dos jornais um bem escasso, as viagens ‘a convite’ que não cumpram critérios claros de relevância e oportunidade, ou não representem uma mais-valia clara do ponto de vista informativo, deveriam ser rejeitadas.
– As aparências contam. Viagens pagas a um jornalista por instituições ou empresas com que este lida habitualmente enquanto fontes ou partes em qualquer tipo de controvérsia dão azo a suspeições legítimas. Também a recente banalização do pagamento, por entidades promotoras, de deslocações para a cobertura crítica de espectáculos, poderá afectar – ainda que de forma injusta para os jornalistas envolvidos – a credibilidade do que se escreve e a confiança na selecção isenta dos acontecimentos que o jornal escolhe noticiar.”