‘Era de esperar. As escutas do processo ‘Face Oculta’, a abortada tentativa de entrada da PT no capital da empresa proprietária da TVI, as dúvidas instaladas sobre a relação do primeiro-ministro com esse negócio e as audições no Parlamento têm dominado os títulos da imprensa nas últimas semanas e dividido os comentadores e a opinião pública. Os leitores deste jornal não são excepção e mostram-se particularmente atentos ao modo como, em títulos e textos, têm vindo a ser noticiados estes temas.
Recebi várias reclamações a este respeito, e tratarei hoje da primeira, que é anterior à minha entrada em funções, mas merece ser recuperada. Refere-se à manchete da edição de 12 de Fevereiro, a data em que o semanário Sol saía à rua com citações particularmente sensíveis de escutas obtidas no processo ‘Face Oculta’, apesar da providência cautelar que visava impedir a sua publicação. ‘Primeira tentativa em 30 anos de censura prévia a um jornal falhou’ – rezava o principal título da capa, por cima de uma fotografia de José Sócrates.
A leitora Ana Pereira não gostou e disse-o em termos curtos e fortes: ‘A manchete (…) do PÚBLICO é mesquinha por colocar uma foto de alguém que nada tem a ver com a notícia. É mentirosa, porque esquece que existem casos de providências cautelares semelhantes muito frequentemente. É ainda confrangedora, porque mostra que o corpo editorial do PÚBLICO não percebe os fundamentos básicos do Estado de Direito’.
A meu pedido, o director-adjunto Nuno Pacheco, que acompanhara o fecho dessa edição, reflectiu sobre as três acusações, concordando que ‘a manchete em causa tem vários problemas’.
Em primeiro lugar, a fotografia escolhida. Considera que ‘devia ter sido mudada’, porque ‘podia dar a ideia, errada, de que teria sido José Sócrates o autor da tentativa de calar o Sol, o que não era verdade’. Explica que a foto ‘tinha sido escolhida antes de a manchete ter sido escrita, porque a relevância das escutas deriva do facto de envolverem o primeiro-ministro’, mas que, ‘quando a manchete se centrou na providência cautelar’, deveria ter sido substituída, por exemplo, por ‘uma foto de Rui Pedro Soares’. Atenuante: ‘Mesmo assim, não é possível dizer que a foto de Sócrates é de alguém que nada tinha a ver com a notícia’, até porque a capa do Sol, como se dizia a abrir o texto da manchete, tinha ‘o perfil de José Sócrates a negro sobre um fundo vermelho e um grande título a branco: ‘O polvo’.
Quanto à questão de esta ter sido ou não ‘a primeira tentativa em 30 anos’ de ‘impedir a publicação de uma notícia’ através de uma providência cautelar, o director-adjunto admite o erro (‘não foi’ de facto a primeira), mas sublinha que esses casos também ‘não acontecem ‘muito frequentemente’, como a leitora dá a entender’. Motivo do erro: tanto na redacção como entre fontes consultadas nessa data, ‘havia o convencimento’ de que tratava do primeiro caso deste tipo, e só depois se verificou existirem precedentes, entre os quais uma providência cautelar dirigida ao extinto Independente.
Na sua terceira crítica, a leitora referia-se presumivelmente ao facto de uma providência cautelar não poder ser descrita como ‘censura prévia’. Nuno Pacheco assim o entendeu e admite que ‘censura prévia devia ter vindo entre aspas’, pois ‘era uma classificação comparativa, não uma descrição literal’. Mas discorda da leitora na referência ‘aos fundamentos básicos do Estado de Direito’. A sua argumentação não pode, por falta de espaço, ser aqui reproduzida (valerá a pena ser colocada on line), mas conduz à seguinte conclusão: ‘O uso e abuso desta figura jurídica [providência cautelar visando impedir a publicação de uma notícia] no caso da imprensa acabará por funcionar, a prazo, como uma espécie de censura prévia dentro das margens estritas da lei’.
Aqui chegados, perguntará o leitor o que penso eu de tudo isto. Pois bem, acho que a leitora fez críticas justificadas (que o responsável editorial citado aceita na maior parte) num caso que teria exigido melhor atenção às soluções encontradas para a capa do jornal. A escolha da fotografia é até, a meu ver, o único ponto discutível. Admito que pudesse ‘dar a ideia’ de que teria sido o primeiro-ministro a promover a providência cautelar, mas bastaria ler o texto que a enquadrava para afastar essa ideia. Acresce que a ligação de Sócrates ao tema noticiado não era gratuita. Quanto à afirmação sobre o ineditismo da providência cautelar, não era verdadeira e deveria, a bem do rigor, ter sido prontamente corrigida.
Mas, a meu ver, a falta de rigor menos aceitável foi a que levou a falar de censura prévia. O conceito tem uma carga política e histórica, de anulação das liberdades de expressão e de imprensa, que não pode ser confundida com o direito de um cidadão a procurar contrariar, por via judicial, a publicação de matérias que considere poderem causar-lhe dano grave, para mais tratando-se, como era sabido, da intercepção de conversas privadas, cuja divulgação seria sempre de legalidade pelo menos duvidosa. A censura prévia é própria de uma ditadura, o direito em questão é natural num Estado de Direito.
Não é relevante, para a clareza desta distinção, o que cada um pense sobre a pertinência da interposição da providência cautelar (eu penso que é um problema do seu autor), sobre o mérito da decisão judicial (com os dados disponíveis, creio que foi uma má decisão) ou sobre a interpretação do ‘interesse público’ que levou o Sol a trazer ao conhecimento geral o que a decisão judicial visava impedir que fosse divulgado (acho que foi uma interpretação legítima). São opiniões que não contendem com o que está em discussão: do ponto de vista do rigor jornalístico, uma providência cautelar aceite por um juiz não é, de modo algum, censura prévia.
Convém salientar que na peça para que a manchete remetia, nessa edição do PÚBLICO, nada se escrevia que permitisse sustentar o que se afirmava no título de capa, à excepção de uma opinião (não consensual, como resultava da própria notícia) escutada a um jurista. Em contrapartida, o editorial desse dia — que, sendo um texto não assinado, é visto como representando a posição do jornal — tendia a sustentar a tese expressa na capa.
Não creio que faça sentido sugerir que o ‘abuso’ de providências cautelares dirigidas à imprensa poderá conduzir a uma situação de censura (para mais quando se afirma que foi o primeiro caso e que viu falhado o objectivo). Nem vejo razão para presumir que, colocados perante um hipotético recurso epidémico a essa figura jurídica, os juízes portugueses iriam decidir, por sistema, contra a liberdade de imprensa. Em suma, a manchete criticada representa uma opinião, certamente legítima, mas não é, a meu ver, aceitável no plano da informação independente e rigorosa.
A discrepância a que não devíamos habituar-nos
Na sua edição de aniversário, no passado dia 5, este jornal trazia na primeira página um título ridículo: ‘Função pública / Adesão à greve entre os 13 e os 80 por cento’.
Era um título coerente com o que nessa edição se escrevia sobre o tema — o jornal reportava correctamente os números divulgados pelo Governo e pelos sindicatos, e estes, como se sabe de todas as greves anteriores, são sempre muito distantes entre si (embora desta vez a distância passasse um bocado as marcas). E podia ser lido em clave irónica: a chamada de capa começava por se referir à ‘discrepância habitual’.
Porque lhe chamo, então, ridículo? Não é só porque dá vontade de rir. Perante a discrepância, de facto habitual, entre dados fornecidos por entidades supostamente responsáveis, o cidadão sabe há muito que uma das partes lhe mente. Ou desconfia do triunfalismo sindical, ou teme a contabilidade ‘criativa’ dos governantes, ou — é o mais provável — acha que ninguém lhe diz a verdade. Em qualquer caso fica sem a conhecer.
O que se passa — e é isso que é criticável — é que o valor informativo de um título destes é nulo. Só nos diz que alguém mente (já se sabia) e nem nos diz quem o faz. Ora uma greve nacional da função pública é um acontecimento relevante, e a sua relevância é medida, antes de mais, pela adesão conseguida. ‘Entre os 13 e os 80 por cento’ é o oposto de uma informação válida.
Reproduzir simplesmente os números divulgados por fontes com interesses antagónicos, para mais quando a experiência ensina que uma ou outra (ou ambas) não são fiáveis, pode servir uma imagem de neutralidade, mas é uma opção conformista que não cumpre o dever de informar nem satisfaz o direito a ser informado.
Arrisco uma sugestão. Não poderia o PÚBLICO, face a uma próxima situação deste tipo, mobilizar os meios necessários para verificar no terreno (por amostragem) o que realmente se passou em repartições, escolas, hospitais, e comparar os dados recolhidos com os fornecidos pelas partes? E investigar os métodos e critérios de contagem, obviamente diferentes, de ministérios e sindicatos? Os resultados, para lá do valor informativo, poderiam ajudar os responsáveis pela ‘discrepância habitual’ a mostrar maior respeito pelo público e melhor relação com a verdade.’