“Em texto publicado no seu blogue no último dia de 2009, o anterior provedor do leitor, Joaquim Vieira, constatava no final do mandato que tinha sido ‘em grande parte frustrado’ o esforço que dedicara a procurar sensibilizar jornalistas e responsáveis editoriais para a importância do uso correcto da língua portuguesa num diário que se propõe integrar o universo dos jornais de qualidade. Em textos anteriores, dera abundantes exemplos de incompetência gramatical recorrente nestas páginas, com realce para a teimosa falta de concordância entre sujeito e predicado em muitas frases aqui publicadas. E acentuara com frequência o caso específico da ‘falta de concordância de certos tempos verbais que se seguem à partícula ‘que’, quando esta é sujeito da oração e se refere a um plural retomado da oração anterior’ — asneira que, inspirado em versos de Camões’, baptizou como ‘praga de Catual’.
Se tiver continuado a ler o PÚBLICO com a atenção que lhe dedicou enquanto provedor, Joaquim Vieira não terá motivos para alterar a conclusão a que chegou. Parecer-lhe-á talvez — como me parece a mim — que essa e outras pragas semelhantes (como a da falta de concordância em género ou número) têm até vindo a desfigurar crescentemente a escrita do jornal. Apesar de serem muito numerosas as queixas que desde o primeiro dia recebo dos leitores, em protesto contra os maus tratos à língua que encontram nestas páginas, não dei ainda ao tema a importância que merece neste espaço. Espero fazê-lo em breve, uma vez recolhida a informação suficiente para transmitir aos leitores o que possa apurar e concluir quanto às explicações e possíveis remédios para uma situação que tem de ser considerada desprestigiante. E à qual, como parece óbvio pela leitura continuada do jornal, a direcção editorial não estará a prestar a atenção exigível.
A abordagem prévia que hoje faço ao tema é apenas demonstrativa e fica a dever-se ao facto de os erros de português, com relevo para as faltas de concordância, terem invadido nos últimos dias os espaços de maior visibilidade no jornal, como a capa, destaques ou títulos de maior dimensão. Como se alguma mente perversa tivesse resolvido pôr nas montras da loja os artigos com defeito.
A edição da passada quinta-feira, com o seu destaque de dez páginas dedicado ao anúncio, pelo primeiro-ministro, do pedido de ajuda financeira à União Europeia, mostra bem como as falhas no controlo de qualidade podem manchar um trabalho jornalístico útil e esforçado. A capa desse dia 7 de Abril já fazia temer o pior, ao apresentar no canto superior direito um título defeituoso (‘Portugueses são dos pagam mais pelos remédios’), em que o desaparecimento do indispensável ‘que’ terá escapado a todos os pares de olhos disponíveis. Voltava-se a página para entrar na matéria do destaque do dia, e encontrava-se, logo a abrir, em letras grossas de título principal, a frase ‘Pressão da banca e das agências de rating levam Governo a pedir ajuda’. A legitimar a suspeita de que não há por aqui apenas distracções inaceitáveis, e a sugerir que as discordâncias entre singular e plural, mesmo em títulos de maior envergadura, ou não são posteriormente detectadas, ou não são consideradas tão graves que levem a evitar a repetição do erro de um dia para o outro, convirá frisar que a praga já atacara na véspera, com visibilidade semelhante. A toda a largura da segunda página da edição de quarta-feira, escrevia-se, a antecipar a decisão que o primeiro-ministro iria anunciar nesse dia: ‘Banca articulou em reunião no Banco de Portugal uma estratégia de sensibilização para a necessidade dum empréstimo intercalar e avisaram que não continuarão a financiar o Estado’.
Apesar de os erros de concordância serem lamentavelmente frequentes em textos do PÚBLICO, a sua ocorrência em títulos de abertura de dois destaques consecutivos não deverá, em princípio, ser atribuída aos autores das peças. O que está aqui em causa é a responsabilidade de quem revê e fecha as páginas mais nobres do jornal. Aqui como, provavelmente, em outros passos infelizes desse destaque de quinta-feira. Como na página 6, em que o idioma escolhido para redigir a pergunta ‘Para que o dinheiro da UE e do FMI vai servir?’ não é certamente o português. Ou na página 7, em que o título ‘É possível que leilão de dívida de ontem seja o último do ano’ não indicia o melhor domínio dos tempos verbais. Ou na página 10, em que o jornalista, recordando a crise de 1983, escreve que Cavaco Silva, enquanto ministro das Finanças do anterior governo da Aliança Democrática, ‘promoveu políticas que, no entender do ex-governador do banco central Silva Lopes, tinham o único fim de ‘promover a vitória eleitoral do PSD-CDS’’ — acusação que logo acima, em legenda que acompanha uma pequena fotografia de Cavaco, passa a ser atribuída a… Ernâni Lopes.
Ou ainda na página 12, em que uma lista dos resultados da maratona de votações na última sessão parlamentar indica numa coluna que foi aprovada a iniciativa legislativa que ‘altera o regime da prescrição médica por princípio activo’, para pouco adiante referir que esse foi um dos diplomas rejeitados. Já duas páginas antes, num quadro sobre os’ ratings atribuídos aos países periféricos da zona euro’ (a hesitação sobre se o termo inglês deve ou não ser grafado em itálico é patente neste trabalho), se trocavam as avaliações atribuídas pelas agências de notação a Portugal, Grécia e Irlanda — e esse foi o único erro reconhecido na edição seguinte.
Não estou a ser exaustivo. Referi apenas os erros mais visíveis num trabalho que, pela sua importância informativa, suscitou certamente o exame atento de muitos leitores. Posso aliás acrescentar, sempre no âmbito do noticiário sobre o pedido de assistência financeira ao nosso país, que na edição on line da véspera, se encontravam — numa resenha de títulos da imprensa estrangeira — ‘traduções’ como estas que indignaram o leitor Carlos Andrade: ‘Financial Times: ‘Sócrates pede resgate a Portugal’’, ou ‘Guardian: ‘Portugal procura resgate da EU…’’. Ou ainda que, umas horas depois, se via o jornal francês Le Figaro ser familiarmente tratado por ‘O Fígaro’.
É desleixo demasiado em tão pouco tempo e no noticiário mais relevante. Têm razão os leitores que vêem na proliferação dos erros de escrita alguma inconsciência ou menosprezo face ao seu direito a um produto jornalístico de qualidade. Valerá a pena regressar ao tema.
O jornal ‘não me passou cavaco’
O caso data já do início do ano, mas é útil para ilustrar problemas que podem surgir no âmbito do direito à imagem e em especial no que respeita à utilização de fotografias de arquivo. Viviam-se as vésperas da campanha eleitoral para as últimas presidenciais e o PÚBLICO destacava o facto de esta estar a ser marcada pelo caso BPN. ‘Cavaco Silva comprou acções da SLN a um preço mais baixo que os accionistas’ foi o título escolhido para encabeçar as páginas de abertura da edição de 8 de Janeiro. Ao lado, a imagem principal do destaque mostrava um anfiteatro universitário, com duas figuras em primeiro plano: o próprio presidente-candidato e uma outra pessoa, não identificada.
Tratava-se de um leitor e assinante do jornal, professor da Universidade Católica, que me endereçou uma reclamação bem-humorada: ‘O Público ‘pespegou’ a minha foto ao lado do presidente Cavaco (tirada numa sessão na UCP em que estive, como vou estar nas dos outros candidatos que lá forem). E logo para ilustrar um tema quente: acções SLN. Fiquei roxo (o meu nome é Francisco Velez Roxo)’. E acrescentava: ‘O freguês que neste caso fez figura de ‘emplastro’ que pode dizer ou fazer? (…) A foto nada tem que ver com o tema. E não é só o professor Cavaco que está na foto. E eu não me chamo Oliveira e Costa! (…) O Público utilizou uma foto [em] que por acaso eu também lá estou. E não me passou cavaco. Devia haver mais cuidado’.
Como o leitor assim ‘apanhado’ já protestara junto do PÚBLICO, sem obter resposta, pedi uma explicação à directora do jornal. Bárbara Reis reconstituiu o processo de escolha da fotografia: ‘Cavaco Silva estava em pré-campanha e por isso todas as suas fotos recentes mostravam o presidente-candidato em cerimónias públicas, rodeado por pessoas. (…) Esta fotografia [de arquivo] tinha várias qualidades: Cavaco Silva está rodeado por desconhecidos; a fotografia nunca tinha sido publicada até então; era recente (tinha pouco mais de um mês) e, por último, [fora feita em] contexto eleitoral (um evento de pré-campanha), sendo a notícia sobre um dos temas fortes das eleições’.
Nessa imagem, acrescenta a directora, ‘vemos Cavaco Silva a caminhar num auditório, em cujo corredor um senhor está de pé em primeiro plano e à volta várias pessoas mais recuadas estão sentadas ou também em pé. O senhor que vemos em primeiro plano não está com Cavaco Silva – parece ter-se levantado no momento da foto ou estar à espera que algo aconteça. (…) Lamentamos que se tenha sentido incomodado com a publicação (…), mas nada na fotografia, na nossa perspectiva, associa qualquer das pessoas na sala a Cavaco Silva. Estavam todas, como indicado na legenda, numa cerimónia pública’.
Parece-me claro que não houve desrespeito pelo direito à imagem de quem foi fotografado numa sessão pública. Mas ‘mais cuidado’, como sugere o leitor, poderia ter havido, atendendo a que o texto assim ilustrado não aludia a uma acção pública de campanha (embora integrasse o noticiário eleitoral), mas sim a um caso polémico, a que qualquer cidadão tem o direito de não gostar de ver associada a sua imagem ao abrir, desprevenido, as páginas do jornal.”