Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

José Queirós

‘Sou assistente no processo Freeport e sê-lo-ei noutros’. Sob este título, o jornalista do PÚBLICO José António Cerejo respondia, na edição do passado dia 2, às críticas dos que põem em causa a utilização desse estatuto jurídico por parte de quem acompanha o caso no plano noticioso. ‘Tornei-me assistente’, explicava, ‘para garantir que a informação chegaria aos leitores’. A avaliar por mais de uma dezena de notícias sobre o processo publicadas imediatamente antes e depois dessa data, é isso que tem vindo a acontecer.

A explicação de Cerejo não satisfez, no entanto, vários leitores, que consideram que o jornalista recorreu a um expediente sem ‘sustentação ética’. As queixas e críticas de que tomei conhecimento têm em comum as seguintes acusações: 1ª) o jornalista e o jornal teriam escondido dos leitores o seu estatuto processual; 2ª) o jornalista (tal como a direcção do jornal, que o autorizou a constituir-se assistente no processo) estaria a subverter o espírito da lei que regula aquela figura jurídica; 3ª) o jornalista ter-se-ia tornado ‘parte interessada’ no processo, o que tornaria deontologicamente censurável que escrevesse sobre ele; 4ª) o facto de Cerejo escrever sobre o caso Freeport seria ainda condenável por ter litígios em tribunal com o primeiro-ministro, José Sócrates, cujo nome fora envolvido como suspeito em inúmeras notícias sobre o tema; 5ª) tendo obtido uma posição privilegiada de acesso ao processo, o jornalista do PÚBLICO estaria a protagonizar um caso de concorrência desleal no universo da informação.

O jornalista e a direcção do jornal rejeitam as acusações. Começando por uma questão de facto: a constituição de Cerejo como assistente no processo Freeport data do início de 2009 e foi, segundo escreve o director adjunto Nuno Pacheco, ‘baseada na ideia de que o acesso directo aos autos (mas nunca a informações em segredo de justiça, como na altura erradamente se disse) poderia permitir servir melhor os leitores’. A iniciativa tinha precedentes por parte de outros órgãos de comunicação (em outros casos judiciais) e foi na altura objecto de explicações do então director do jornal, José Manuel Fernandes, que recordava que ‘a lei permite que qualquer cidadão se constitua assistente em processos relativos a suspeitas de corrupção’ e defendia que ‘colaborar com a investigação judicial em casos de interesse público não é incompatível com a profissão de jornalista’. O caso foi na altura analisado pelo anterior provedor do leitor, Joaquim Vieira, que considerou que ‘do ponto de vista ético nada obsta (…) a que um jornalista colabore com a justiça’, mas alertou contra o risco de ‘o compromisso principal do jornalista’ deixar de ser com os leitores, ‘para passar a ser com o aparelho judicial’.

É como uma negação dessa hipótese que deve ser lida a declaração de Cerejo no seu artigo de 2/8. Assegurando ter requerido a constituição como assistente com fins unicamente profissionais, o jornalista afirma: ‘Não o fiz para me tornar parte interessada na investigação, para contribuir com informações, requerimentos de diligências ou com uma acusação particular’.

Fê-lo, explica num depoimento que me enviou, para evitar ‘expedientes’ a que agentes do sistema judicial recorrerão para obstruir o acesso a ‘informação que temos direito de obter e divulgar’, e por rejeitar que essa informação ‘seja passada, por baixo da mesa, a interlocutores privilegiados’, eventualmente ‘de harmonia com estratégias e agendas ocultas’.

E conclui: ‘Dir-se-á que me estou a servir da figura do assistente para fins que foram alheios à sua instituição. Admito. Mas não estou a fazer nada de ilegal, antes pelo contrário, estou a jogar nos limites estritos da lei para fugir aos entraves abusivos que sistematicamente são levantados ao seu cumprimento, em matéria de livre acesso à informação que não está em segredo de justiça, e estou apenas a tentar cumprir a minha obrigação profissional: informar com rigor’.

Por seu lado, Nuno Pacheco torna claro que a argumentação de Cerejo’ tem a concordância da direcção nestes pontos: 1) usar a constituição como assistente no processo ‘com um objectivo claro e exclusivamente profissional: garantir a obtenção, de forma legal e transparente, de informação consistente e documentada sobre um assunto de indiscutível interesse público’; 2) não a usar, em nenhum caso, para ‘intervir efectivamente no processo graças ao estatuto de assistente’ ‘. Neste quadro, diz o director adjunto, a constituição do jornalista como assistente ‘pode ser, ao permitir relatar com fidelidade os trâmites registados nos autos, útil ao jornalismo, aos leitores e ao país’.

No depoimento que me enviou, o jornalista esclarece não ter em curso qualquer litígio judicial com José Sócrates (‘houve apenas um processo posto por mim contra ele, que está resolvido e arquivado há muito tempo’), mas recusa que tal motivo possa ser invocado para ‘impedir um jornalista de escrever’, comentando que esse seria o desejo de ‘alguns políticos’ com ‘tentações totalitárias’: ‘Bastar-lhes-ia, para afastar um qualquer jornalista que considerassem incómodo, provocar um qualquer litígio’. Tal raciocínio, argumenta, visa apenas’ tentar condicionar a minha liberdade profissional e pôr em causa, sem motivo ou justificação, a minha independência e isenção’. E remata: ‘Se há críticas ao que escrevo, concretas, com indicação de erros e de incumprimento de deveres e obrigações, venham elas. Discuti-las-ei e, como já aconteceu, se as achar justificadas darei a mão à palmatória’.

As queixas que recebi e as respostas do jornalista visado poderão ser consultadas, com maior detalhe, no blogue do provedor. Passo a responder às questões colocadas pelos leitores, pela ordem em que acima as enunciei:

1) O PÚBLICO não escondeu o estatuto processual de José António Cerejo no caso Freeport. Mas, na minha opinião, deveria tê-lo recordado com clareza logo que deu início à publicação de notícias resultantes da consulta do processo pelo jornalista na qualidade de assistente.

2) Deixando aos especialistas o esclarecimento de qualquer dúvida no plano jurídico, depreendo de tudo o que li que não há motivo para considerar ofendido, neste caso, o preceito deontológico segundo o qual ‘o jornalista deve utilizar meios legais para obter informações’. Parece-me óbvio, por outro lado, que Cerejo e a direcção do PÚBLICO recorreram a um subterfúgio que poderá não se adequar ao espírito das normas que regulam a figura do assistente no processo. A bem da transparência na relação com os leitores, deveriam ter sido claramente explicados os motivos que ditaram essa escolha, e teria sido útil dar a conhecer os termos exactos do requerimento para constituição como assistente, e da decisão do juiz que a autorizou.

3) O jornalista e a direcção editorial assumiram o compromisso de que a posição de assistente será exclusivamente usada para fins profissionais, sem qualquer intervenção no processo, e terão de o respeitar integralmente, em nome da credibilidade do jornal. No limite, o mérito da iniciativa será avaliado pela utilidade pública do trabalho jornalístico daí decorrente, devendo reconhecer-se que o noticiário publicado desde finais de Julho, credibilizado pelo acesso directo aos documentos, trouxe já alguns dados novos, e a clarificação de outros, relativos a um caso de evidente interesse público. Porém, ao servirem-se de uma figura a que a lei atribui no processo penal a posição de ‘colaboradores do Ministério Público’, ao mesmo tempo que declaram não estar essa colaboração nas suas intenções, jornalista e jornal obrigam-se a uma redobrada exigência de encararem o escrutínio do caso Freeport também como um escrutínio da investigação e da actuação dos procuradores responsáveis pelo inquérito.

4) José António Cerejo tem toda a razão em considerar que pode e deve continuar a escrever sobre este caso.

5) O argumento da concorrência desleal foi utilizado às avessas pelos seus críticos. Claro que Cerejo se colocou, como assistente, numa posição privilegiada. Mas, ao que tudo indica, nada impediria outros de o fazerem. Deslealdade, também para com os leitores, é termo que se aplicará melhor a quem prefira o ambiente promíscuo e inescrutável do tráfico de ‘informações’ calculadamente sopradas a conta-gotas por agentes do processo.

Em suma: com os dados de que disponho, entendendo as dúvidas colocadas por vários leitores sobre a opção feita pelo PÚBLICO, e concordando que merecem debate clarificador, penso que no conflito de valores aqui em causa devem prevalecer os direitos de informar e ser informado, e o dever de o fazer com rigor.

Investigar a investigação

Vários leitores criticaram, alegando falta de isenção, o que alguns chamam o ‘folhetim’ de notícias que no PÚBLICO se sucederam à divulgação do despacho de acusação no caso Freeport. Sem prejuízo de poder regressar ao tema na sequência de um depoimento pedido à direcção editorial (as queixas poderão entretanto ser consultadas no meu blogue), deixo aqui um primeiro comentário telegráfico a essas críticas, que incidem nos seguintes tópicos: 1) o PÚBLICO teria dado à notícia das conclusões do Ministério Público (MP) um relevo inferior ao que dera no passado a suspeitas que incidiram sobre José Sócrates; 2) a manchete de 29/7 (‘Procuradores quiseram ouvir Sócrates mas não tiveram tempo’) não seria suficientemente distanciada e crítica da actuação do MP; 3) algumas peças publicadas nas edições seguintes seriam reprováveis, por alimentarem novas suspeitas sobre o primeiro-ministro.

A primeira crítica é justaz e aliás extensível à generalidade da imprensa, mas deve ter-se em conta que era já conhecido que o MP não encontrara razões para acusar Sócrates. A segunda é compreensível, tendo em conta a abertura assertiva do texto (‘Afinal, José Sócrates não pode afirmar ‘finalmente’, como fez anteontem…’) e a sugestão nele feita de que os procuradores foram impedidos de levar a investigação até ao fim — o que não está apurado e só poderá avaliar-se com rigor, espera-se, no fim de um inquérito já ordenado. Embora tenda a concordar que seis manchetes (mais algumas chamadas de capa) em treze dias foram um excesso, considero a terceira crítica deslocada: o ‘folhetim’, ou seja, as notícias assinadas por José António Cerejo em sucessivas edições trouxeram dados novos e esclareceram questões em aberto, e formam no conjunto um relato consistente resultante do estudo do processo. Não são fugas de informação descontextualizadas e insusceptíveis de verificação, e a sua relevância não me parece questionável. Só posso desejar que sejam o ponto de partida para uma ‘investigação à investigação’ do caso Freeport, que não esqueça o contraditório nem se limite à informação libertada por diferentes poderes.’