Wednesday, 04 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

José Queirós

“Na sequência dos últimos textos publicados neste espaço, em que procurei ilustrar — com os contributos de muitos leitores — a frequência inaceitável com que os erros de escrita e outras falhas no controlo da qualidade editorial têm vindo a multiplicar-se nas páginas do jornal, gostaria hoje de partilhar com os que me lêem o que pude apurar, junto da direcção editorial e da equipa de copy desk, sobre os procedimentos de revisão em vigor no PÚBLICO. Penso que os leitores têm direito a conhecê-los, para poderem fazer a sua própria avaliação das causas de um problema que, se não for enfrentado com a eficácia exigível, poderá afectar decisivamente os padrões de qualidade que os levaram a fazer deste o seu diário.

As equipas profissionais de revisão são indispensáveis num bom jornal. Se é certo que de qualquer redactor de um jornal de referência se deve esperar que saiba exprimir-se correctamente em português (o que, infelizmente, nem sempre acontece), não é menos verdade que a ocorrência de erros de redacção é, até certo ponto, inevitável. O ritmo de escrita de um diário, o crescimento das solicitações profissionais em equipas redactoriais emagrecidas, as pressões da hora de fecho, a simples distracção que está na origem de uma ‘gralha’ — a que devem somar-se as insuficiências culturais ou de domínio da língua a que não escapam muitos jornalistas talentosos — explicam que assim seja. O que não é inevitável, nem aceitável, é que esses erros não sejam corrigidos e sobrevivam nos textos que irão ser lidos pelos compradores do jornal.

É para os corrigir que existem os revisores. É do seu trabalho invisível e anónimo que depende em boa parte a qualidade do produto final. No caso do PÚBLICO, a criação de uma equipa de copy desk representou uma ambição superior ao que tradicionalmente se exigia às secções de revisão. Para além de garantirem a correcção ortográfica e gramatical dos textos produzidos na redacção, estes profissionais funcionam como copy editors (os ‘desks’, na gíria interna), habilitados a corrigir ou melhorar as peças noticiosas em vários outros planos (factual, técnico, deontológico) e a adequá-las às regras de estilo do jornal. Na enumeração de Rita Pimenta, responsável pela edição de textos da revista Pública, isto implica intervir tanto no plano do conteúdo (nomeadamente para assegurar a audição das partes envolvidas numa notícia, detectar e eliminar contradições, garantir o respeito pela distinção entre informação e opinião e, em geral, zelar pelo cumprimento das regras éticas e deontológicas), como no plano da forma (assegurando, entre outros pontos, o respeito pelas regras jornalísticas de construção dos textos, a harmonização de grafias, a correcção ortográfica e linguística, a concisão e clareza na redacção de notícias, a ausência de repetições ou a adequação dos títulos às frases de arranque das peças). As tarefas destes ‘editores de texto’ incluem ainda a verificação de certos aspectos gráficos. E deve acrescentar-se que integram também, actualmente, a equipa responsável pela moderação das muitas centenas de comentários diariamente enviados pelos leitores da edição on line.

Para o conjunto destas funções de controlo de qualidade, abarcando idealmente, sete dias por semana, todos os cadernos e suplementos do jornal, o PÚBLICO dispôs originalmente de 16 profissionais. Após sucessivas reduções da dimensão da equipa, restam actualmente cinco pessoas, mais uma em exclusivo para a revista dos domingos.

Nestas condições, e também devido a alterações no processo de produção editorial, a intervenção destes profissionais foi-se tornando menos exaustiva. Segundo escrevem os ‘desks’ da redacção do Porto, ‘de um tempo em que havia seis intervenções em cada texto (revisão pelo autor, revisão pelo editor da secção, edição por um copy editor, revisão na página electrónica por um copy editor, exame da sua impressão em papel ainda por um copy editor e ok final do director de fecho) passámos para o procedimento actual, que mantém todas as outras, mas retira aos copy editors duas das três intervenções anteriores’. O que faz aumentar, naturalmente, a possibilidade de os erros não serem detectados, sobretudo quando, por desleixo ou falta de tempo, não são devidamente garantidas as releituras a cargo dos autores e da hierarquia editorial.

Por outro lado, o próprio âmbito do controlo de qualidade de textos e páginas foi sendo reduzido. Os textos do caderno P2, do suplemento Cidades e da Pública são em regra ‘revistos na totalidade’, o que já não acontece com os suplementos Ípsilon e Fugas e com matérias para a edição on line. Quanto ao caderno principal do jornal diário, a revisão é feita em página, acontecendo nem todas passarem por este crivo, ‘por razões de tempo’. Em princípio, deve ser assegurada a leitura integral da primeira e última páginas, do destaque do dia, das aberturas de secção e das páginas de opinião (editorial incluído) e dada prioridade, nas restantes, a títulos e legendas, bem como à entrada e remate dos textos. Na prática, a pressão do fecho leva com alguma frequência os responsáveis editoriais a dispensarem a passagem pelos ‘desks’ de algumas das páginas de fecho mais tardio, que contêm muitas vezes as notícias mais importantes e que por isso serão as mais lidas — o que poderá explicar a sensação de que é nelas que se concentram os erros que dão origem a mais protestos dos leitores.

Há quatro anos, a direcção do jornal procurou enfrentar as deficiências na revisão das páginas, em boa parte resultantes da crónica dificuldade organizativa em ‘conseguir fechar o jornal de forma gradual’, para evitar o congestionamento das tarefas de controlo de qualidade na ponta final de cada jornada de trabalho. A directora, Bárbara Reis, explica que foi então criada ‘a figura do editor de fecho, um editor experiente que é responsável pelo fecho do jornal com um membro da direcção’, e que deve garantir precisamente a revisão das páginas já ‘fechadas pelos respectivos editores’. Esse filtro permitiu, segundo afirma, ‘diminuir muitos erros óbvios’.

Mas a verdade é que está longe de os eliminar, como se verificou com a capa da edição da última quinta-feira, em que nenhuma experiência terá sido suficiente para evitar o erro (só ontem assinalado na secção O PÚBLICO errou) de ilustrar o justo destaque dado ao falecimento do historiador Vitorino Magalhães Godinho com uma fotografia do seu irmão José, também já desaparecido. Ou com novos absurdos numéricos, como o que indignou o leitor Manuel Pipa na página 10 da edição de anteontem, em que se podia ler, numa notícia sobre a operação Censos 2011, que já estão recenseadas mais de dez milhões de pessoas, ‘em 5639 alojamentos’. Ou com os recorrentes erros de português, que há algum tempo levaram o leitor José Laranjo — estupefacto com o título ‘Mais de 1200 bolsistas fora da Universidade’, estampado na capa do jornal a encimar uma notícia sobre bolseiros — a pedir: ‘Por favor, não contribuam para destruir a língua portuguesa’.

Neste último plano, os responsáveis editoriais do PÚBLICO reconhecem que o problema tem vindo a agravar-se e preparam uma iniciativa para o enfrentar. ‘Há um mês’ — informa Bárbara Reis —, ‘a direcção discutiu e acordou com o Conselho de Redacção fazer uma lista, com a ajuda dos copy-desks, dos erros mais comuns, os que são eliminados antes da publicação e os que, infelizmente, saem no jornal. Essa lista servirá, precisamente, para alertar a redacção e tentar reduzir a sua frequência e, idealmente, eliminá-los’. É uma boa medida, sobretudo se for acompanhada de outras formas de envolver periodicamente os jornalistas no reconhecimento e na crítica interna desses erros mais frequentes.

Não compete aos jornais resolver os desastres sofridos pelo ensino do português no sistema educativo, nem essa anomalia académica que permite que escolas de jornalismo habilitem para o exercício da profissão quem não domina correctamente a língua. Mas compete a um jornal como o PÚBLICO garantir processos de selecção, enquadramento e, se necessário, formação dos seus redactores que correspondam aos padrões de qualidade a que os leitores têm direito. No jornal impresso como na edição on line, na qual as agressões à língua são bem mais frequentes.

Dito isto, e sem fazer da falta de meios uma desculpa (os leitores não são responsáveis pela gestão de pessoal das empresas de comunicação social), cumpre notar que nenhum jornal de qualidade pode dispensar uma boa equipa de revisão, e que nenhuma inovação tecnológica substitui a sua intervenção qualificada. Ao longo de mais de uma década, os processos de reestruturação destinados a assegurar o equilíbrio financeiro das empresas do sector têm feito dos revisores e editores de texto vítimas preferenciais, encarando-os erradamente como dispensáveis. No caso do PÚBLICO, uma diminuição de efectivos em cerca de dois terços não poderia deixar de ter, como teve, consequências negativas.

Sem esquecer as crescentes dificuldades financeiras que ameaçam os jornais de qualidade, e que obrigam a muita imaginação, empenho e escolhas difíceis para encontrar soluções capazes de satisfazer as expectativas dos seus compradores, considero que o drástico enfraquecimento da equipa de copy desk do PÚBLICO foi uma péssima decisão, que deveria ser repensada. Quem quer vender um produto no segmento da ‘qualidade’ deveria saber que não pode dispensar os meios necessários ao controlo dessa qualidade, sob pena de insucesso a prazo. Creio que também isto deve ser dito aos leitores que protestam, com toda a razão, contra os erros que afectam a imagem do jornal.”