‘A reportagem é o género mais nobre do jornalismo e, infelizmente, o mais afectado pelas restrições financeiras que hoje pesam sobre a imprensa. Numa das suas modalidades, a do acompanhamento no terreno de grandes acontecimentos da actualidade internacional, o trabalho de um bom repórter pode ser decisivo para aproximar os leitores de uma realidade que conhecem menos bem, ou que conhecem apenas através de imagens estereotipadas e da selecção informativa de teor quase uniforme operada pelas grandes agências noticiosas.
A aposta que o PÚBLICO decidiu fazer numa cobertura própria da campanha eleitoral brasileira, justificada por todos os laços entre Portugal e aquele país e pela crescente importância do Brasil no palco internacional, merece por isso ser saudada. A reportagem de qualidade, para além do prazer da leitura, faz toda a diferença no plano informativo. Permite, neste caso, compreender melhor e sentir mais de perto o pulsar da campanha e da vida quotidiana do outro lado do oceano. Somada às notícias, às análises, às entrevistas, aos números das sondagens, é um meio importante para alargar o conhecimento da realidade que os jornais devem proporcionar aos seus leitores.
Tem esse valor, na minha opinião, a já extensa série de reportagens assinadas nestas páginas, ao longo das últimas semanas, pela jornalista Alexandra Lucas Coelho. Mas há quem discorde. É o caso do leitor Alexandre Monteiro, que considera — em reclamação que me dirigiu — que esses textos ‘têm sido marcados por uma grande parcialidade da jornalista, muito preocupada em enaltecer a figura de Lula da Silva e muito pouco interessada em mostrar os argumentos daqueles que se opõem ao presidente em exercício’. Neles, acrescenta, ‘José Serra e seu partido são apenas figurantes, sem imagens, sem passado e, obviamente, sem futuro’.
Este leitor critica especialmente ‘a matéria de 13 de Outubro a respeito da imprensa brasileira’, e acusa a jornalista de ‘dedicar num tom justiceiro duas páginas a falar dos principais órgãos de comunicação do Brasil, desvalorizando na peça a censura de que o Estado de São Paulo é vítima há mais de um ano, impedido por via judicial de divulgar novos dados do esquema de corrupção de José Sarney, um dos principais aliados de Lula’. E termina afirmando que a repórter ‘tem todo o direito de exprimir as suas preferências em artigos de opinião’, mas ‘não pode, ou pelo menos não deve (…) seleccionar os dados e utilizar os termos que melhor se adequam às suas convicções’.
Eu diria que o leitor escolheu um mau exemplo para invocar boa doutrina. Uma releitura do conjunto de reportagens (ainda não concluído) da jornalista do PÚBLICO tornará difícil sustentar qualquer acusação de parcialidade a favor da candidata apoiada pelo presidente Lula, Dilma Rousseff. Penso que levará a concluir, isso sim, que a atenção profissional que dedicou à observação dos sinais no terreno e à sua evolução, durante a primeira volta da campanha, terá levado a que os leitores deste jornal tenham sido dos menos surpreendidos com dois factos que o escrutínio do passado dia 3 revelou, contrariando previsões e sondagens: a incapacidade de Dilma em ganhar à primeira volta e a causa principal dessa incapacidade, a forte votação na candidata Marina Silva.
Uma reportagem não é um texto de opinião, mas também não é uma notícia. Uma maior latitude de interpretação e a subjectividade do olhar do jornalista, fundado na observação directa, e naturalmente temperado pela preocupação da imparcialidade e do contraditório, são aqui essenciais e constituem mesmo o seu principal valor. Acresce que quando se trata, como neste caso, de uma série sobre uma campanha política, cada peça isolada deve ser vista como parte de um conjunto: se hoje o tema é o comício de um candidato, amanhã será a conversa com o apoiante de outro. É o conjunto que deve ser avaliado quando se fala de imparcialidade.
Nesse plano de conjunto, que nos disseram até hoje as reportagens de Alexandra Lucas Coelho sobre as tendências que se confrontam nesta eleição? Simplificando muito, penso que nos foram dizendo três coisas: que uma grande parte do Brasil beneficiou com as políticas sociais de Lula e que isso joga a favor de Dilma; que muitos eleitores não perdoam os casos de corrupção associados à governação do PT e que isso favorece Serra e favoreceu Marina; que os apoiantes desta última deverão dividir-se na segunda volta do sufrágio. E disseram isto ouvindo as pessoas e retratando os ambientes, que é o que deve esperar-se de uma reportagem. Deixando aos leitores os juízos de valor.
O leitor Alexandre Monteiro criticou especialmente a peça publicada no passado dia 13, intitulada ‘O caso de Maria Rita ou o poder da imprensa brasileira’. Quando um artigo favorável a Lula e Dilma publicado no influente Estado de São Paulo (diário que apoia abertamente Serra) levou ao afastamento da sua autora, Maria Rita Kehl, o que por sua vez gerou um forte movimento de solidariedade com a colunista, o caso agitou fortemente a campanha. A jornalista do PÚBLICO traçou a propósito um retrato sugestivo da grande imprensa brasileira e das suas tensões com o poder político, ouvindo com equidade as opiniões contraditórias de várias figuras do universo mediático, incluindo o director de conteúdos do Estado de São Paulo, que aliás viria a considerar que as declarações prestadas ao PÚBLICO foram reproduzidas com ‘clareza e precisão’. Convirá ainda referir que o diário paulista é de facto vítima de uma decisão que o impede de revelar dados sobre um caso de corrupção envolvendo José Sarney. Trata-se, como o leitor aliás refere, de uma deliberação judicial. E esse episódio, apesar de não ser o tema de actualidade, não foi esquecido na peça do PÚBLICO.
Como já ficou claro, considero injusta a crítica ao trabalho de Alexandra Lucas Coelho. Julgo que as suas reportagens da campanha brasileira têm constituído um bom serviço aos leitores. Mas cabe-me ainda dar a palavra à repórter, que confrontei com a reclamação recebida.
Na sua resposta, escreve nomeadamente a jornalista: ‘Não me lembro de ter escrito uma palavra mais entusiasmante sobre Dilma Rousseff do que sobre José Serra. (…)Não havendo, naturalmente, qualquer estratégia nem agenda do PÚBLICO ou da repórter, os textos foram reflectindo esta realidade não-ideológica, que vem da observação e da atmosfera que se gera à volta de cada candidato’.
‘Depois da primeira volta’, prossegue, ‘escrevi neste jornal: ‘Lula e Dilma serão relativos perdedores em relação às expectativas. (…) José Serra, que passa à segunda volta um pouco acima do que as sondagens lhe davam, ganha sem ser exactamente um vencedor. (…) O vencedor mais claro de todos parece ser a democracia brasileira. A eleição que se preparava para ser uma espécie de plebiscito à candidata do presidente no poder, afinal está a ser realmente disputada.’ (…) Escrevi e repito: haver segunda volta parece-me o melhor sinal para a democracia brasileira. (…) Ao contrário do que Lula, Dilma e o PT certamente gostariam’.
E conclui: ‘ A tensão é crescente, e só assim posso explicar o protesto deste leitor. Quando a tensão cresce, quem defende convictamente um lado tende a achar que o jornalista está do lado oposto’.
É também a minha opinião.
Humor negro involuntário
A redacção de títulos, pós-títulos e entradas das notícias obedece a regras técnicas inspiradas por valores como a relevância, a inteligibilidade, a eficácia informativa e a capacidade sugestiva. São normas que existem para garantir a qualidade das peças noticiosas. Uma que é por vezes esquecida é a que recomenda que esses elementos — que são lidos antes do próprio texto da notícia, e para alguns dispensam mesmo essa leitura — sejam complementares entre si, mas possam ser entendidos de forma autónoma. A compreensão do que se escreve numa entrada não deve depender do que se diz num título.
Vêm estas considerações técnicas a propósito do comentário feito por um leitor à estranha entrada de uma notícia intitulada ‘Comissão Europeia quer proibir clonagem de animais’ (página 13 da edição da passada quarta-feira). Essa entrada, que na cabeça de quem a redigiu, estaria articulada com o título citado através, por exemplo, de uma subentendida conjunção adversativa, rezava assim: ‘A proposta de John Dalli, comissário responsável pela saúde e consumidores, prevê a autorização do consumo humano dos seus descendentes’.
‘Interessante’, comenta o leitor Ricardo Charters d’Azevedo, para quem ‘a mania de reduzir títulos, na pressão da saída do jornal, dá isto…’. Pretendia-se naturalmente explicar, como aliás decorre da notícia, que Dalli não vê inconvenientes no consumo humano da carne ou do leite dos bichos descendentes de animais clonados. Mas o que a entrada da notícia diz de facto, tal como foi publicada, é que há um comissário europeu que faz questão de ver canibalizada a sua própria e putativa prole.
Uma revisão especialmente atenta às frases mais destacadas de cada página evitaria que um momento de desatenção se transformasse num contributo involuntário para uma antologia do disparate na escrita jornalística.’
José Queirós