Friday, 29 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

José Queirós

É uma história pouco edificante, que levou vários leitores a manifestarem a sua perplexidade ou indignação face ao que consideraram ser um desvio desprestigiante à linha editorial do PÚBLICO. Os factos, tanto quanto me foi possível apurá-los, podem resumir-se assim:

— Às 16h48 do passado dia 1 de Maio, apareceu na página de abertura da edição on line deste jornal uma notícia não assinada (ou melhor, genericamente assinada ‘por PÚBLICO’), intitulada ‘Hino de campanha do PSD diz que ‘está na hora de mudar… o Passos Coelho’’. Num português duvidoso, afirmava-se nesse texto que ‘o hino de campanha do PSD para as legislativas comete uma gafe’, assim ilustrada: ‘No refrão principal, diz que ‘está na hora de mudar… o Passos Coelho’’. O anónimo autor da peça reconhecia que ‘a intenção’ não seria a de passar tal mensagem, mas não se coibia de comentar, eventualmente com o propósito de ter graça: ‘Todo o ‘jingle’ assenta na ideia de mudança. E a vontade de mudar é tanta que até pede a mudança do líder’. A terminar, uma ligação para o sítio oficial do PSD permitia aos interessados escutar o dito ‘jingle’.

— Enquanto esta ‘notícia’ do PÚBLICO (a partir de agora usarei aspas para a referir) se ia propagando pela rede, começavam a cair as primeiras reacções na caixa de comentários da edição on line. Houve quem, seguindo a lógica da peça, aproveitasse para gozar com o que seria mais uma prova de ‘amadorismo’ dos responsáveis do PSD. Houve quem se indignasse com a ‘notícia’, considerando-a ‘ridícula’, ‘fútil’ e própria de ‘uma campanha negativa’. E houve, também, quem afirmasse que ela simplesmente não era verdadeira e afectava a credibilidade de quem a divulgara.

— A partir das 18h26 do mesmo dia, quem acedesse ao Público Online encontrava uma nova peça informativa sobre o assunto, igualmente assinada ‘por PÚBLICO’, mas agora com o título ‘Letra oficial do hino do PSD diz que ‘está na hora de mudar! /Com Passos Coelho’’. Nela se transcrevia na íntegra o texto do hino social-democrata, entretanto enviado ao jornal pelo partido. E afirmava-se, a abrir, de novo num português deficiente, que ‘a letra do hino do PSD para as eleições legislativas diz que no refrão principal ‘Está na hora de mudar!.. Com Passos Coelho’ e não está na ‘está na hora de mudar… o Passos Coelho’ ‘(sic). Não era feita qualquer referência à notícia anterior, como se ela não tivesse existido. No entanto, a anterior afirmação taxativa sobre o que constaria do hino laranja era agora relativizada, sem explicações suplementares, passando a referir-se que ‘mudar… o Passos Coelho’ seria afinal o que ‘parece ouvir-se na versão cantada colocada no site do PSD’.

— Para os responsáveis editoriais do jornal, a história parece ter acabado aqui. A ‘notícia’ não surgiu, no dia seguinte, como poderia esperar-se, na edição em papel. Nenhum reconhecimento de erro, nesta ou na edição on line.

— Entretanto, em momento que não pude apurar com exactidão, o PSD terá decidido alterar a tal versão cantada. Quem quiser conhecê-la, acedendo à página oficial do partido ou recorrendo à maior parte das reproduções que circulam pela Internet (um exercício que pessoalmente não aconselho a quem possa incomodar-se com a indigência literária deste tipo de rimas partidárias), ouvirá agora distintamente o que já se lia na versão escrita: ‘Está na hora de mudar! / Com Passos Coelho’.

Para vários leitores que me fizeram chegar mensagens de protesto, o caso não deve ficar esquecido nas profundezas do espaço virtual. O ‘artigo’ do PÚBLICO ‘é uma vergonha e tem segundas intenções’, acusa Hugo Rosado.’Manipulação grosseira’, diz Licínio Castelo, acrescentando que este jornal ‘habituou todos os que o lêem a outro tipo de jornalismo’. A referência a ‘uma gaffe’ (…) merece no mínimo um pedido de desculpas (…). Quem autoriza este tipo de notícias deverá ter a certeza da veracidade das mesmas’, escreve Julieta Lima.

Procurei ouvir o famigerado ‘jingle’. Com alguma dificuldade, encontrei na rede a versão a que se referiam as peças de 1 de Maio no Público Online, isto é, a versão anterior à modificação que alguém no PSD terá decidido introduzir para o partido não ser acusado, como já estava a ocorrer, de estar a difundir uma cantilena que apelaria ao derrube do seu líder.

O que ouvi convenceu-me de que por trás da ‘notícia’ inicial do PÚBLICO está o que só posso classificar de batota informativa. Ouvi um coro a cantar um refrão que termina com a frase ‘Está na hora de mudar!’. A seguir, após o que o redactor da ‘notícia’ descrevera como ‘uma ligeiríssima pausa’, um conjunto de vozes (presumo que o mesmo grupo coral) grita ‘Passos Coelho!’. Grita, não canta. Para quem não tenha ouvido, explico melhor (e perdoe-se a comparação): é como se um qualquer coro patriótico, após cantar a frase ‘Contra os canhões marchar, marchar’, resolvesse gritar ‘Portugal’, não em registo musical, mas como quem martela uma palavra de ordem. Acresce, embora seja um aspecto secundário, que o que ouvi — e vários leitores dizem ter também ouvido — na gravação original, a seguir à palavra ‘mudar’, foi ‘Passos Coelho!’ e não ‘o Passos Coelho’, como no Público Online se afirmou, primeiro, que se ouvia, e, depois, que ‘parece ouvir-se’.

Face à ausência de qualquer correcção à ‘notícia’ inicial, quis saber se a direcção do jornal a tinha por verdadeira, se a considerava relevante no plano informativo e se tinha sido feita alguma diligência para a confirmar junto do PSD. Perguntei ainda por que é que a segunda peça não fazia qualquer referência à primeira, apesar de poder ser entendida como um desmentido, e por que é que nenhuma delas era assinada por um elemento da redacção.

A directora, Bárbara Reis, explica que, no passado dia 1, ‘vários colegas na redacção ouviram a música’ e ‘nenhum teve dúvidas’ de que ‘o que se ouvia no refrão era: ‘está na hora de mudar… [ligeira pausa] o Passos Coelho’’. Acrescenta que ‘a mesma leitura’ foi ‘feita por outros jornais’, e defende a referência a uma ‘gafe’. Sendo esta uma ‘inabilidade’, uma coisa ‘desastrada’, entende que ‘foi isso que aconteceu, pois ‘de um orçamento de mais de meio milhão de euros para acções de propaganda, saiu um hino imperfeito’. Defende também a relevância do caso — ‘Era o hino oficial da campanha (…). Seria ouvido (…) por todo o país, vezes sem conta’ —, que não terá sido noticiado na edição impressa porque nesta ‘não há áudio’. Concorda que ‘foi um erro’ a segunda peça não referir a anterior, ‘embora [esta] estivesse sempre publicada no site’, e aceita que ‘o PSD poderia ter sido ouvido’ antes da sua divulgação. Refere, finalmente, que ‘acontece com frequência, sobretudo em pequenas notícias como esta’, as peças serem assinadas ‘por PÚBLICO’.

Não são, a meu ver, explicações aceitáveis. Ignoram o que atrás referi, de que só um olhar (no caso, um ouvido) tendencioso poderá ‘ler’ o grito tribal ‘Passos Coelho’ — entretanto substituído no ‘jingle’ por uma voz serena a dizer ‘Com Passos Coelho’ — como um complemento directo do verbo ‘mudar’, com que termina o último verso cantado do refrão. Se tal ‘leitura’ foi retomada por outros jornais, este é um caso em que se esperaria que o PÚBLICO se distinguisse da lógica associada à imprensa menos séria. A ‘notícia’ das 16h48, com o seu título provocatório, simplesmente não é verdadeira nem corresponde às práticas de um jornalismo honesto. Mais: ainda que a ‘leitura’ feita pelo PÚBLICO tivesse algum fundamento sério (e não tem), não estaríamos perante mais que uma laracha, e não creio que os leitores apreciem ver larachas a passar por notícias. Mesmo os que possam ter achado graça à facécia sabem — e houve quem o lembrasse — que o jornal tem espaço próprio e bem demarcado para brincar com a actualidade ou inventar ‘factos’.

Também não é aceitável que se divulguem — no espaço de menos de duas horas — informações de teor diferente sobre o mesmo assunto, sem que a peça posterior refira o que não estava certo na anterior. Pior ainda se esta continua disponível, sem qualquer modificação, no Público Online. A ausência de sinalização de alterações ou correcções na edição para a Internet é condenável no plano ético e confunde os leitores. Neste caso, funciona objectivamente como uma ocultação do que se escrevera na ‘notícia’ inicial. A somar à ocultação da sua autoria, com a fórmula ‘por PÚBLICO’ a envolver na responsabilidade pelo texto o conjunto da redacção ou, pelo menos, os responsáveis editoriais. Por fim, se o papel não tem ‘áudio’, continua a servir para transcrever o que se ouve, se for verdadeiro e relevante.

A futilidade essencial deste caso não lhe retira gravidade, e mais ainda em período de pré-campanha eleitoral. Deve ser reconhecido o esforço que o PÚBLICO tem vindo a fazer para dar aos leitores informação correcta e útil sobre as questões que dominam a actualidade política, com uma agenda editorial que evita resumir-se ao pingue-pongue das declarações partidárias ou aos ‘faits-divers’ próprios da época. Saúdo em especial — por ser um exemplo que é desejável ver repetido e alargado — iniciativas como a que marcou a edição da última terça-feira (‘A prova dos factos’, pág. 6), em que são desmontadas de forma clara e competente a opacidade e as piruetas do discurso de diversas lideranças políticas sobre um tema tão relevante como o da redução da taxa social única no âmbito do acordo celebrado com o FMI e as instituições europeias.

Aprofundamento dos temas, clareza nas prioridades, descodificação jornalística do discurso político, verificação independente de factos — é o que legitimamente esperarão do seu jornal leitores como os que, a propósito da historieta do hino laranja, comentaram que ‘do PÚBLICO se exige mais do que isto’, e sobretudo neste período. Afastando do espaço informativo, ou remetendo para lugares mais adequados, as graçolas de bom ou mau gosto.