Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

José Queirós

“Para o PÚBLICO, ‘a fotografia não é um género menor ou um mero suporte ilustrativo, mas um contraponto informativo e dramático do texto’. A citação é do Livro de Estilo do jornal, que enuncia algumas regras a observar na captação e utilização de imagens fotográficas, das quais destaco as seguintes: a sua obtenção não deve invadir a reserva da intimidade ou ignorar situações de constrangimento das pessoas; a procura do ‘ângulo inesperado’ não pode conduzir à ‘deformação caricatural das situações ou personagens’; o conjunto formado por títulos, textos e imagens num trabalho jornalístico deve ter ‘unidade, coerência e eficácia informativa’.

A avaliar pela correspondência que recebo, a importância que o jornal dá à fotografia é partilhada por muitos dos seus leitores, que manifestam com alguma frequência o seu agrado ou desagrado face às imagens publicadas. As que são escolhidas para a capa despertam especial atenção e são vistas, com razão, como espelhando opções editoriais. Quando retratam situações e temas que tendem a dividir as diferentes sensibilidades dos leitores — na política, no desporto, nos costumes — são mais escrutinadas e dão por vezes origem a processos de intenção, geralmente injustos, que pressupõem critérios de selecção de imagens que ultrapassariam a lógica jornalística e resultariam de uma parcialidade não assumida.

As campanhas eleitorais são um período especialmente propício a equívocos desse tipo. Alguns leitores consideraram tendenciosa a escolha da fotografia publicada na primeira página da edição de 30 de Maio, que ilustrava um comício organizado na véspera pelo Partido Socialista no Palácio de Cristal, no Porto. Luiza Cabral, por exemplo, viu nessa opção uma peça de ‘uma campanha aberta contra o primeiro-ministro’, pois ‘mostrava Sócrates de olhos fechados’. ‘Não deviam ter outra…’, comentou. Outro leitor, José Amorim, manifestou ‘repulsa’ pelo ‘tratamento editorial que é feito com imagens destas, altamente condicionadas e condicionantes’.

São, a meu ver, críticas desajustadas. O que nos mostra, afinal, a fotografia escolhida, assinada por Miguel Manso? Em fundo, e apesar de captar apenas uma secção do cenário, sugere um comício de ‘sala cheia’ e com uma audiência empenhada no apoio à campanha socialista — em coerência com o relato das jornalistas Maria José Oliveira e Rita Siza, que falam de um ‘cenário confortável’ e da presença de ‘cerca de cinco mil pessoas’. Em primeiro plano, um friso de dirigentes socialistas cujas expressões parecem variar entre a atenção, a satisfação e a preocupação, passando pelo aparente alheamento momentâneo de Mário Soares. Ligeiramente destacado, José Sócrates, de cabeça inclinada e olhos aparentemente fechados, surge-nos com uma expressão facial que sugere cansaço, preocupação, talvez crispação ou desencanto. Parece-me natural ver nela o retrato oportuno do acabrunhamento de quem por essa altura reconheceria que o entusiasmo dos seus apoiantes já não traduzia a realidade eleitoral do país, embora lhe coubesse contrariar essa realidade, até ao fim, pela palavra e pela atitude, nos palcos da campanha.

Numa lógica oposta à de uma imagem encenada para efeitos de propaganda, este é, se assim se pode dizer, um instantâneo que procura a verdade. É coerente com a situação então vivida pelo protagonista — alvo da hostilidade dos mais diversos quadrantes, identificado por todos os adversários como primeiro responsável pela crise, e a ver, por esses dias, o partido rival a distanciar-se significativamente nas sondagens. É coerente com o relato que o PÚBLICO fez desse dia de campanha, com as jornalistas que acompanharam a candidatura socialista a referirem a forte mobilização de apoiantes conseguida no Porto, mas sem deixarem de salientar que Sócrates vivia então ‘horas difíceis’: Siza Vieira e Souto de Moura tinham feito questão de desmentir publicamente o seu apoio ao então ainda líder do PS, Almeida Santos previra dias antes o seu afastamento em caso de derrota, Manuel Alegre sugerira que nesse cenário conduzisse a oposição, e Mário Soares, no próprio comício, terá evitado o elogio pessoal do ainda primeiro-ministro.

A opção por esta fotografia na capa da edição de 30 de Maio parece-me pois adequada no plano jornalístico. Não vejo nela qualquer quebra de isenção editorial, como sugerem os leitores referidos, nem essa avaliação poderia ser feita a partir de uma única imagem. Recordando as orientações acima referidas, considero que a fotografia em questão é informativa, capta algum dramatismo do momento, nada tem de caricatural e é coerente com o conjunto do trabalho em que se integra.

Por vezes não é assim. Recordo o caso recente de um leitor que se insurgiu, e a meu ver com razão, contra a publicação de uma fotografia do presidente da Câmara do Porto, Rui Rio, na edição de 20 de Abril passado. A imagem, sem qualquer relação directa com a notícia que acompanhava, mostrava o autarca numa posição e gesto (aparentemente a compor o traje) que, nada tendo de menos digno, seriam evitados por qualquer figura pública consciente de estar frente a uma câmara e, para mais, numa cerimónia solene, como era o caso. O leitor José Domingos Neves escreveu à directora do PÚBLICO uma carta (publicada a 23.04) em que considerava que se pretendera ‘ridicularizar’ Rio. Tenha ou não existido essa tentação, e conhecendo-se vários episódios de um relacionamento difícil entre o autarca e a imprensa, a sua interpretação só pode ser considerada legítima. Nesse caso, a tal busca do ‘ângulo inesperado’ traduzia-se de facto numa ‘deformação caricatural’ abusiva, infringia um dever de reserva, não tinha valor informativo nem relação de coerência com títulos e texto. E não devia, portanto, ter sido publicada.

Poucos dias antes, a 12 de Abril, fora publicada uma fotografia da cerimónia em que o presidente Cavaco Silva deu posse aos novos representantes da República para os Açores e a Madeira. O leitor Hernâni Beltrão viu nela também um propósito de ‘ridicularizar’, desta vez o Presidente da República, que teria sido ‘deixado de mão estendida numa imagem finamente escolhida ou recortada de modo a eliminar criteriosamente o personagem a quem o cumprimento se dirigia’. Julgo que viu mal. Nesse caso, o ângulo será inesperado, mas a imagem nada tem de ridicularizante nem permite supor que Cavaco foi ‘deixado de mão estendida’. A directora do PÚBLICO, Bárbara Reis, reviu a fotografia, que ‘não foi reenquadrada, foi mesmo tirada assim’, e explica: ‘Numa cerimónia de tomada de posse, o gesto de cumprimentar o empossado é o símbolo mais forte desse ritual. É isso que vemos nesta fotografia (…). Neste tipo de cerimónias, as fotografias tendem a ser muito monótonas. O objectivo (…) é dar ao leitor uma imagem que surpreenda e conte uma história, respeitando, naturalmente, a imagem pública dos fotografados’.

Em contrapartida, parece-me totalmente justificada e útil a queixa que recebi acerca de uma fotografia publicada a 16 de Maio na edição on line, a ilustrar a peça ‘Sara entrega pedido de mudança de nome e género no registo civil’, que relata um caso pioneiro de alteração da identificação pessoal ao abrigo da nova legislação sobre identidade de género. Diz um leitor (que assina simplesmente Fernando) que o texto em questão, da autoria de Andrea Cunha Freitas, ‘merece muitas estrelinhas de qualidade’, enquanto a imagem que o acompanha ‘deixa muito a desejar’. Considera que, ‘para além de ser de muito baixo e mau gosto apresentar uma fotografia que mostra a bunda da senhora composta com a sua lingerie de fio dental, a fotografia não se coíbe de leituras muito alternativas ao conteúdo do artigo’.

É o mínimo que se pode dizer, para além de esclarecer que a imagem nada tem a ver com o caso relatado (e constitui por isso uma agressão gratuita à protagonista da notícia) e se limita a reproduzir um preconceito estúpido. Integra-se na mesma linha indigente, a que o PÚBLICO nem sempre escapou, que costuma levar a imprensa sensacionalista a ilustrar com imagens de arquivo tidas por ‘picantes’ (género strip-teaser enrolada num varão) qualquer notícia que possa ter, por remota que seja, alguma relação com sexo. Bárbara Reis considera que o leitor ‘tem toda a razão’: ‘A fotografia foi mal escolhida (…) porque aquele pessoa não é Sara (é uma mulher anónima na sala de espera de uma ONG) e porque transmite de facto um preconceito’. ‘A fotografia correcta saiu na edição impressa’, no dia seguinte.”