“O mundo dos serviços secretos é por definição opaco e o seu escrutínio pelo jornalismo propício à manipulação de informações dificilmente verificáveis. Quando a actividade das ‘secretas’, ou de alguns dos seus quadros, é colocada sob a suspeita de servir interesses políticos ou empresariais particulares, como tem acontecido com algumas notícias que nas últimas semanas povoaram a imprensa portuguesa, é obrigação do jornalismo procurar a verdade até aos limites do possível, num terreno que é por natureza hostil ao exercício do rigor e à transparência de processos.
No caso do ex-dirigente do SIED (Serviço de Informações Estratégicas de Defesa) suspeito de ter passado informações sigilosas ao grupo empresarial (Ongoing) em que actualmente trabalha, tudo o que foi escrito desde que o semanário Expresso o revelou no mês passado será ainda insuficiente para uma percepção pública clara sobre todos os contornos do episódio. O inquérito judicial e as audições parlamentares já anunciadas não dispensam o trabalho jornalístico autónomo com vista a esclarecer os factos e diminuir as incertezas na sua interpretação.
Vem este intróito a propósito da reclamação de um leitor sobre a edição do PÚBLICO de 29 de Julho, em que se destacava a manchete ‘Espião foi autorizado por Sócrates a passar informações à Ongoing’. A mesma afirmação, com variantes formais, surgia em título de página interior (‘SIED passou dados à Ongoing com autorização de Sócrates’) e, na mesma data, na edição on line (‘Director das ‘secretas’ passou dados à Ongoing com autorização de Sócrates’).
Esta afirmação foi desmentida no mesmo dia, tanto pelo actual primeiro-ministro, em nota enviada à agência Lusa, como por um porta-voz não identificado do anterior chefe do Governo, em declarações à mesma agência. Na edição seguinte, este jornal referiu o primeiro desmentido, ignorou o segundo e, numa peça não assinada, anunciou que ‘o PÚBLICO mantém que a transmissão dessas informações tinha que passar por uma autorização de José Sócrates, como aconteceu neste caso’.
Fazendo fé nos desmentidos, o leitor referido escreveu: ‘De novo vem o PÚBLICO com uma notícia incriminatória de José Sócrates, que foi já desmentida. (…) É lamentável que este jornal tenha para com Sócrates uma atitude odiosa, mais uma vez. Lá vem de novo com um caso por provar, de modo execrável, que peca por falta de verdade, pelos vistos’.
Passando ao lado do processo de intenção, que a notícia não autoriza, não é exacto classificá-la como ‘incriminatória’, como faz notar a sua autora, a jornalista Maria José Oliveira: ‘O artigo em causa não é uma ‘notícia incriminatória’, simplesmente porque não se pode acusar alguém de cumprir as suas funções. Entre as várias competências do primeiro-ministro está, como aliás foi referido na notícia, a tutela directa dos serviços de informação. Que, por sua vez, dirigem um Programa de Segurança Económica que consiste, em traços gerais, em colaborações com empresas consideradas estratégicas’. A jornalista esclarece ainda que ‘a referência a Sócrates surgiu para situar no tempo os factos ocorridos e não como acusação, uma vez que (…) a autorização não traduz um acto ilícito’.
O director adjunto Miguel Gaspar, que acompanhou a edição da peça, nota por seu lado que esta ‘se refere a um acto administrativo normal do primeiro-ministro’, e acrescenta que o ex-espião envolvido no caso já afirmara publicamente que ‘as informações haviam sido transmitidas de forma legal e que tinha documentação nesse sentido’, pelo que ‘o PÚBLICO deu o passo seguinte e foi procurar quem teria dado essa autorização’.
De acordo com estas explicações, será legítimo concluir que o que o PÚBLICO disse aos seus leitores, ainda que sem total clareza, foi que as informações alegadamente transmitidas a uma empresa privada não representariam uma fuga de informação da parte de um quadro das secretas, mas a prestação de um serviço legal, devidamente autorizado por quem de direito e justificado, bem ou mal, por um qualquer interesse estratégico nacional. Ou seja, a ter havido uma fuga de informação, seria a que fez chegar ao Expresso dados confidenciais relativamente ao serviço prestado. Esse novo elemento, contrastante com o que vinha sendo publicado, justificaria o destaque dado à notícia: independentemente do juízo ético sobre o procedimento de um responsável das ‘secretas’ que entretanto transitou para a empresa a que tal serviço teria sido prestado, não se estaria perante uma actuação ilegal ou irregular. A ser assim, teria feito sentido privilegiar no título essa ideia, e não o invocado ‘acto administrativo normal’ do ex-primeiro-ministro, que teria sido referido apenas ‘para situar no tempo os factos ocorridos’.
Sucede que não foi isso que o PÚBLICO fez, ao afirmar taxativamente que Sócrates autorizou um espião ‘a passar informações à Ongoing’ — o que não podia deixar de ser lido, no contexto do que estava em causa, como descrevendo um acto específico do antigo primeiro-ministro relativamente à transmissão, àquela empresa em concreto, de determinados dados (aqueles a que aludia a notícia inicial do Expresso, e cuja natureza foi sendo revelada, sem desmentido conhecido). Não posso saber se tal acto existiu ou não, mas posso verificar, como verifiquei, que nada, na notícia de 29 de Julho, torna possível sabê-lo do modo inequívoco que seria necessário para validar os títulos escolhidos. E são os títulos que aqui estão principalmente em causa. A própria autora da peça admite que ‘a manchete, assim como o título da notícia, poderão não ter sido as melhores opções e suscitado interpretações erradas por quem não leu a notícia com atenção’.
Eu penso que a manchete poderá ter suscitado maior perplexidade precisamente a quem leu a notícia com atenção. Uma interpretação benévola seria a de que o PÚBLICO estudou o quadro legal e deduziu que qualquer transmissão de dados dos serviços secretos a uma empresa privada teria de ter passado por uma autorização explícita e concreta do primeiro-ministro, devendo ser lidas nesse sentido as afirmações do ex-director do SIED, de que ‘tudo foi feito dentro da lei, registado, documentado, com autorização superior’. Uma tal dedução seria sempre uma extrapolação discutível das normas da legislação vigente, que colocam os serviços de informações na dependência directa do primeiro-ministro, a quem cabem competências genéricas de tutela e orientação, que pode aliás delegar. Miguel Gaspar garante, contudo, que ‘a notícia não decorre de uma dedução, mas sim de um facto confirmado’.
Os leitores continuam, no entanto, sem saber de que ‘facto confirmado’ se trata exactamente. O facto de que o primeiro-ministro tutela as ‘secretas’, como decorre da lei, sem novidade? A existência de um ‘programa de segurança económica’ que leva os serviços de informações a colaborar com empresas consideradas ‘estratégicas’, o que é um dado de contexto relevante e bem explicado numa notícia posterior (31 de Julho) de Maria José Oliveira, mas que não basta para fundamentar a manchete da antevéspera? A cobertura hierárquica da actuação do director do SIED, seja ela qual for? Um despacho genérico do primeiro-ministro, que definiria ‘as condições em que os dados recolhidos pelo SIED (…) podem ser fornecidos’ a terceiros, como se sugere na edição de 30 de Julho? Ou uma autorização formal e específica de Sócrates para ‘passar informações à Ongoing’, como se escreveu em título?
Miguel Gaspar argumenta que ‘a questão de fundo não é quem autorizou, mas se houve ou não autorização’. Permito-me discordar. Será assim no plano jurídico, não é certamente assim no plano jornalístico. O PÚBLICO anunciou em título e chamada de capa que Sócrates autorizou um espião ‘a passar informações à Ongoing’. Foi esse facto que originou a reclamação que recebi e inspirou comentários críticos de outros leitores na edição para a Internet. Um desses comentadores considerou ‘estranho’ que a peça de 29 de Julho fosse mantida on line (e lá continua, de facto, sem alterações ou acrescentos), apesar dos desmentidos conhecidos. Eu partilho a estranheza do leitor, embora considere razoável a explicação do director adjunto quanto ao modo como o jornal lidou com as declarações atribuídas a um porta-voz de Sócrates, depois de o próprio se ter recusado a prestar qualquer esclarecimento, tanto antes como depois da publicação da notícia: ‘O consenso, entre nós, foi o de que não devíamos aceitar como válido um desmentido que partiu de uma fonte anónima’.
Parece-me claro que a formulação da manchete de 29 de Julho é criticável à luz das boas práticas profissionais. Julgo também que os leitores não estão em condições de saber, pela leitura do que foi publicado, se é ou não verdadeira. Constato que o jornal não divulgou, até hoje, novos elementos que a fundamentassem. Se não vier a fazê-lo, resta-lhe a sua própria credibilidade para defender que o título escolhido corresponde a uma informação exacta, e não a uma ‘habilidade’ formal censurável, que terá acabado por prejudicar o resultado de um esforço para esclarecer melhor um caso relevante da actualidade. Convém ter presente, no entanto, que a credibilidade se dá mal, a prazo, com a falta de rigor.”