‘A controvérsia sobre o casamento homossexual é um tema sobre o qual o PÚBLICO decidiu adoptar uma posição clara. ‘O casamento entre pessoas do mesmo sexo é um direito que deve ser reconhecido por uma sociedade que defende a igualdade e rejeita a discriminação’ — lia-se no editorial de 9 de Novembro de 2009, quando o tema aquecia o debate público, cerca de três meses antes de o Parlamento decidir nesse mesmo sentido, ao aprovar a lei que o Presidente da República entretanto submeteu à análise do Tribunal Constitucional.
Tratando-se de uma posição que não é consensual na nossa sociedade, é natural que esta opção da direcção do jornal tenha desagradado a uma parte dos seus leitores. Outros, pelo contrário, terão apreciado a clareza com que foi manifestada. O que a todos importará é que seja sempre salvaguardada a distinção clara entre opinião e informação, a qual, sendo indispensável em todas as matérias, será naturalmente sujeita, em casos como este, a um escrutínio mais apertado.
Assim terá pensado o leitor Xavier Cortez, que — para ‘escrever sem que a emoção ganhe à razão’ — deixou passar umas semanas sobre a ‘Manifestação pela família e pelo referendo’ antes de criticar a cobertura do acontecimento pelo PÚBLICO. Essa manifestação, recorde-se, reuniu em Lisboa, no passado dia 20 de Fevereiro, milhares de pessoas em protesto contra a lei aprovada no Parlamento e em defesa de um referendo sobre o tema.
Queixa-se este leitor de que, na edição desse dia, o jornal dedicou à manifestação ‘apenas uma pequena nota em cabeçalho’, preenchendo depois duas páginas do Destaque com ‘um estudo que pretende provar que a família hoje já não é o que era, que hoje em dia é normal que os filhos nasçam fora do casamento’, seguido de ‘uma reportagem com uma família em que a mãe se casou pela igreja e dos três filhos dois vivem em união conjugal e o terceiro vive com um parceiro do mesmo sexo’, que pretenderia ‘provar’ ser essa ‘uma família perfeitamente funcional, para não dizer moderna’. Acrescenta que, na edição seguinte, a reportagem da manifestação referia em título que ‘um grupo de extrema-direita provocou um grupo de gays’ [não é exacto, o verbo ‘provocar’ não foi usado], assim privilegiando em seu entender ‘um fait-divers completamente estranho à manifestação’.
Sem pôr em causa a legitimidade da opção editorial assumida em Novembro, afirma na mensagem que me enviou (e que poderá ser lida na íntegra no meu blogue): ‘Não me parece é correcto que essa opção editorial possa originar um desvio ao Livro de Estilo do PÚBLICO que a anterior direcção aprovou (…). Um jornal não pode ser tendencioso’.
Fui reler os textos citados pelo leitor, e concluí que os terá lido com alguma precipitação. Não é verdade que a referência à manifestação se limite a ‘uma pequena nota em cabeçalho’. A primeira peça do Destaque, assinada pela jornalista Catarina Gomes, anuncia, logo a abrir, a sua realização e objectivos. Explica o que os organizadores designam por ‘família verdadeira’ e dedica-se, depois, à análise dos dados disponíveis sobre a diversidade actual das formas de família, num trabalho oportuno e equilibrado, que permite tirar conclusões como a que se lê no subtítulo: ‘O casal tradicional com filhos continua a ser o perfil dominante da família portuguesa. Mas muito está a mudar: um terço dos bebés já nasce fora do casamento’.
‘O texto a que o leitor se refere teve como pretexto a manifestação’, mas o seu objectivo ‘foi fazer um balanço do que é a família portuguesa hoje’, esclarece a sua autora. No meu entender essa foi uma boa opção jornalística, contribuindo para o esclarecimento público de um tema que dominava a actualidade, e perfeitamente compatível com as regras editoriais e a personalidade deste jornal. E que foi bem complementada, nessa edição, por uma impressiva reportagem de Alexandra Lucas Coelho e Pedro Cunha, em que se descreve como ligações ‘tradicionais’ e ‘não tradicionais’ podem conviver bem numa mesma família.
Registe-se que Catarina Gomes já tivera oportunidade de referir com algum detalhe os argumentos dos organizadores da manifestação, numa notícia publicada três dias antes na edição on line, mas que só teve (e isso, sim, parece-me contestável), um eco mínimo no jornal do dia seguinte.
Reli também a notícia da edição de 21 de Fevereiro, assinada pela jornalista Maria Lopes. Confirmei que privilegia de facto, no título, o incidente que opôs um grupo de activistas da extrema-direita a um outro de defensores do casamento homossexual, obrigando à intervenção da polícia. Mas considero que essa foi uma opção compreensível (o olhar jornalístico persegue naturalmente, como diz Maria Lopes, a ‘novidade’, o ‘inusitado’), e que não pôs em causa um relato equilibrado da manifestação, no qual ficam claras as motivações, quer da maioria que ali gritava ‘Casamento é homem e mulher!’, quer dos que respondiam ‘Eu amo quem quiser!’.
Não descortino, por isso, qualquer desvio ao Livro de Estilo do jornal na cobertura deste acontecimento. A manifestação de 20 de Fevereiro foi um acontecimento relevante e o PÚBLICO não se limitou a dar voz aos seus organizadores e a descrevê-la de forma burocrática. Ouviu opiniões diversas, problematizou e aprofundou o tema, descreveu com vivacidade o que se passou na rua. Fez, em suma, o que lhe competia.
Ainda que respeitada, como penso que foi, a diferença entre informação e opinião, poderá a posição assumida em Novembro pelo jornal sobre o casamento homossexual ter influenciado ou estar a influenciar negativamente a abertura das suas páginas à expressão plural das posições divergentes que sobre esta questão se confrontam na sociedade? A esse respeito, tem a palavra o director-adjunto, Nuno Pacheco:
‘Esta posição não impediu (…) que nos dias seguintes o PÚBLICO não tenha dado a devida cobertura, não apenas aos movimentos e pessoas que se manifestavam contra o casamento gay, como também aos que, aceitando-o com limites, defendiam o referendo e não a simples aprovação pelos deputados no Parlamento. Isso reflectiu-se, por exemplo, na publicação, sem reservas, de uma série de artigos polémicos de opositores ao casamento gay e apoiantes do referendo, tais como António Pinheiro Torres (14/11/2009, 24/2/2010), José Ribeiro e Castro (16/11/2009), Isilda Pegado (18/11/2009, 07/12/2009), Gonçalo Portocarrero de Almada (13/12/2009, 18/1/2010), Mário Pinto (16/12/2009), Pedro Vassalo (8/1/2010), J.J. Brandão Ferreira (01/03/2010). O PÚBLICO foi talvez o jornal que mais artigos com tais posições aceitou, apesar da sua expressa posição editorial em contrário. É isto que, para nós, significa liberdade e um debate aberto e sem preconceitos sobre o tema’.
Parece-me esclarecedor e nada tenho a acrescentar. Gostaria apenas de sublinhar um ponto: ao assumir, em nome dos valores que então citou, uma posição como a que entendeu dever tomar na querela do casamento homossexual, o PÚBLICO poderá eventualmente perder a simpatia de leitores para quem essa posição choca com as suas próprias convicções. Esse é o lado da emoção. Mas, se mantiver a clareza da distinção entre factos e opiniões, se informar com rigor e se as suas páginas continuarem abertas, como se deseja, à expressão plural das ideias, não perderá certamente o seu respeito. Esse é o lado da razão.’