Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Manuel Pinto

‘‘Morto a tiro pela GNR quando furtava gasóleo’; ‘Idoso acusado de abusar de meninas a troco de doces’; ‘Menina de 13 anos violada sob ameaça de arma de fogo’; ‘Ex-recluso detido por ter violado a mãe’. Estes são alguns dos títulos do JN da semana que passou. Referem-se a casos dramáticos e tristes, sórdidos alguns deles, que não podiam deixar de ser noticiados. Num jornal sensacionalista poderiam ter dado parangonas e manchetes. Felizmente que não foi o caso este jornal fez, num ou noutro dia, discreta chamada na primeira página. Mas tratou o assunto, com o destaque que entendeu, na zona adequada, a secção de ‘Polícia’. Um tratamento não isento de críticas, certamente. Mas as críticas não são, desta vez, o motivo desta coluna.

Hoje o foco vira-se para quem olha com atenção para este jornal e para os media jornalísticos em geral. É o caso da Prof. Cristina Ponte, docente do Curso de Ciências da Comunicação da Universidade Nova de Lisboa, que, na disciplina de Análise de Imprensa, tem envolvido os seus alunos no estudo comparativo de vários jornais diários, alguns dos quais focando as notícias relativas ao foro criminal.

O grupo de estudantes envolvido realizou uma análise dos diários Público, JN, Diário de Notícias (DN) e Correio da Manhã (CM), a qual se prolongou por cerca de duas semanas, de 22 de Setembro a 4 de Outubro de 2004. Os temas sob observação foram Saúde, Crime, Ciência e União Europeia. No caso do crime, esse período foi especialmente marcado pelo já célebre caso da Joana, a menina algarvia desaparecida e que alegadamente terá sido morta por familiares, assim como pelo caso do acidente mortal de Palmela, provocado por uma corrida ilegal de ‘tuning’. Dos quatro temas, o crime aparece, de longe, como o mais tratado, quanto ao número de peças e nos quatro títulos jornalísticos. Ainda assim, é interessante verificar a distribuição a liderança cabe claramente ao CM, com 470 das 1117 peças, seguindo-se o JN, com 304, o DN, com 189 e o Público com 154. Nesse período, a maioria dos destaques de primeira página dos temas de crime coube ao JN, seguido do CM. O ‘caso Joana’ foi o tema forte em várias edições, mas não como manchete principal.

Outras conclusões deste estudo (que em vários pontos confirmam e reforçam resultados de estudos anteriores) são as seguintes

. A esmagadora maioria das matérias é tratada sob a forma de notícia, sem grande investimento na contextualização e no comentário, o que contrasta flagrantemente com outros temas regularmente cobertos pelos jornais;

. Mais de dois terços das peças analisadas referem-se a crimes contra pessoas e a vida em sociedade; quer o JN quer, em menor grau o CM dão bastante cobertura a crimes contra o património, enquanto que o Público destaca mais os crimes contra o Estado.

. As fontes de informação das notícias sobre crime são predominantemente oficiais. Com muita frequência são dadas ‘quando o seu processo de resolução já está em curso’, o que reforça a visão positiva (de eficácia) das forças de segurança.

. ‘A capacidade da imprensa de criar uma ideia de insegurança em torno da vida urbana parece ser uma característica comum tanto a jornais ditos de referência, como o Público, como a jornais de cariz popular’.

. ‘Da análise sobressai ainda o facto de nenhum dos quatro jornais poder ser caracterizado como sendo totalmente de referência, ou totalmente tablóide’. Apesar de tudo, ‘o CM foi aquele que claramente apresentou mais características de uma imprensa popular, (?) mesmo tablóide. Com títulos que ocupam quase a totalidade da página, construídos de modo brutalmente emotivo, o CM procura interpelar o leitor, obrigá-lo a ler aquilo que o jornal tem para dizer, chocando-o. Por sua vez, ‘o JN não é um jornal caracterizável como de referência, mas também não parece ocupar o lugar de um jornal popular. Encontra-se a meio termo, uma vez que introduz alguns elementos de menor sobriedade (como as grandes manchas de imagem, a maior ocorrência de destaques de crime) mas mantém outros mais característicos da imprensa de referência (títulos que privilegiam a função referencial da linguagem, muitas peças na primeira página)’.

(Uma leitura dos resultados deste trabalho, em particular ‘O Crime em Destaque’, elaborado por Ana Margarida Peixoto, de onde extraí as citações anteriores, pode ser encontrada na Internet em http://www.fcsh.unl.pt/deps/dcc/txt_o_crime_em_destaque.htm).

Várias observações se podem fazer sobre estas notas conclusivas. Por hoje, limito-me a assinalar que as escolas e universidades, nomeadamente, e por maioria de razão, os cursos que formam jornalistas são ou deveriam ser espaços privilegiados de estudo dos media. Em alguns casos são-no. Mas poucos dão conta dos resultados e conclusões a que chegam. Essa é, de resto, uma forma importantíssima de escrutínio público dos media, como não se tem cansado de sublinhar o investigador e professor da Universidade de Paris Claude-Jean Bertrand (cf. ‘A Deontologia dos Media’, Minerva – Coimbra 2002). Seria importante que a mesma reflexão acontecesse entre os jornalistas, editores e directores. Ao fim e ao cabo, são eles quem conhece mais de perto o universo de dificuldades, de interesses, de exigências e de lacunas com que se defrontam os jornais e o jornalismo. Sem eles será sempre difícil levar tão longe quanto seria desejável a análise e o conhecimento dos problemas aqui implicados. Daí que o provedor, que sobre esta matéria solicitou a quatro jornalistas um comentário sobre as conclusões do estudo atrás referenciado, entenda dever manter de pé essa solicitação. A reflexão deve prosseguir. A compreensão destas questões ganha em os jornalistas virem a jogo com os seus pontos de vista. O mesmo repto é dirigido aos leitores.’