Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Manuel Pinto

‘A ideia andava no ar, há alguns anos. Afinal, se os jornais – alguns, pelo menos – se dotaram de provedores, por que não havia de o fazer também a televisão? Não é voz corrente que o impacto social e cultural deste meio é incomparavelmente maior do que o da Imprensa?

A maioria que suporta o actual Governo colocou o assunto no seu programa eleitoral e, aparentemente, prepara-se para concretizar a ideia instituir a figura do provedor do telespectador no operador de serviço público televisão, ou seja, na RTP. Uma medida que, não sendo pioneira, já que tem tradição em países como o Canadá ou a França, continua a ser rara e arrojada.

A experiência de quase dez anos com os provedores do leitor, que existem, em Portugal, em quatro diários (um desportivo e três generalistas), e num jornal digital, não se pode dizer que esteja ainda consolidada. Mas proporciona já um manancial de orientações que pode ser útil no momento de definir o estatuto e as funções do órgão a criar no serviço público de rádio e TV. Contudo, as especificidades do meio televisivo e a centralidade que este meio ocupa na vida das pessoas e das famílias fazem com que a experiência dos jornais não possa ser mecanicamente transposta para o audiovisual.

Uma dessas especificidades, que tem de ser clarificada à partida, consiste em saber se o campo de competências e atribuições do novo provedor se limitará ao terreno da informação ou se compreenderá igualmente o da programação. Esta última possibilidade, que perfilho, traz naturalmente consequências para o perfil dos ocupantes de tal função.

Há vários pontos a ter em conta para que um provedor do telespectador (ou do radiouvinte) seja mais do que uma operação de marketing empresarial ou político. A primeira é a da independência do cargo, tanto face à empresa e seus órgãos dirigentes como face ao próprio Governo. A segunda diz respeito ao processo de designação. Em caso algum deverá caber Governo. Mas já não suscita reservas que o titular de tal cargo surja por designação da Administração. Desde que conte com parecer favorável do Conselho de Redacção e do Conselho de Opinião. De facto, sendo esta uma função eminentemente de mediação entre o público e os sectores que projectam, programam e executam os conteúdos colocados em antena, compreender-se-ia mal que os representantes dos profissionais e do próprio público não participassem deste processo.

Por outro lado, seria altamente desejável que o provedor do telespectador dispusesse de um programa regular em antena, para examinar e esclarecer questões suscitadas pelos telespectadores ou de sua própria iniciativa. Em rigor, não é obrigatório que tal aconteça. Pouca gente saberá que a TVI já contou, nos seus primeiros tempos de vida, com um provedor, o prof. Sousa Franco, o qual, por não ter visibilidade na grelha de programação, nem sequer era conhecido como tal. Ser provedor na TV não pode limitar-se a responder a cartas ou ‘mails’ dos cidadãos. Pode fazer do espaço de emissão própria um momento especial de pedagogia cívica e de educação para os media. O recurso aos sites dos canais e aos novos meios de comunicação interactiva poderão abrir um outro espaço interessante de intervenção.

Não considero, finalmente, muito viável o desempenho eficiente de um provedor do telespectador sem uma espécie de carta de compromissos publicamente divulgada e assumida, que sirva de referencial para todas as partes que interagem, em torno e através do mediador.

Em conclusão aquilo que parece (e, a meu ver, é) um ponto programático louvável apresenta não poucas dificuldades na sua execução. Desde logo porque o meio televisivo continua a estar muito distante do cidadão comum (refiro-me ao exercício da cidadania e não aos simulacros de participação através, por exemplo, dos reality shows). Depois, porque o reconhecimento dos erros e das derrapagens é raro e porventura mais difícil nas estações de TV. Finalmente, porque a magnitude das tarefas exigirá provavelmente que um provedor seja apenas a face visível de uma pequena equipa, e não uma figura solitária, sempre em risco de ser submerso pelas múltiplas frentes a que deverá prestar atenção. Resta saber se as dificuldades vão ser desculpa para a inacção ou acicate para a inovação.

PS – Sociedade civil deveria ser auscultada

Já tínhamos provedor de Justiça, provedor do leitor, provedor do cliente? Passaremos, em breve, a contar também com o provedor do telespectador e do radiouvinte. De todos eles, poderá (ou não) ser aquele que mais visibilidade pública terá. É uma questão de escala. Enquanto que, num grande jornal, os leitores se medem na casa das centenas de milhar, os telespectadores num canal aberto e generalista entram na casa dos milhões. Mas é também uma questão de natureza, digamos assim, decorrente do poder da imagem tornada espectáculo e do carácter doméstico e domesticado do seu ‘consumo’. A televisão sofrerá certamente, com os novos media, mudanças profundas no modo como é distribuída e acedida. Mas, tanto quanto é possível antever, não deixará, nos próximos anos, de continuar a ocupar uma posição de destaque na vida individual e colectiva.

Neste contexto, os serviços públicos têm vindo a procurar encontrar o seu lugar específico, num panorama audiovisual cada vez mais mercantilizado e menos diverso, mormente nos canais de sinal aberto. Apostando profissionalmente num certo nível de diferenciação, poderão ser um referencial, se não para os canais privados, pelo menos para os públicos que deles são quotidianos utilizadores.

É também por isso que a criação da figura do provedor do telespectador não pode tornar-se uma mera medida de gestão interna do operador público de rádio e televisão. A lógica de serviço público exigiria que ela fosse entendida como uma das expressões de um novo tipo de contrato entre esse operador e o próprio público que serve.

A função de provedor representa uma forma acrescida de promoção do exercício da cidadania face aos media. Ao responder às queixas e às sugestões, ao esclarecer dúvidas, ao promover uma cultura de exigência, de auto-regulação, de assunção e correcção de erros e de silêncios, o provedor constitui um agente da literacia mediática e da participação cívica.

Consequentemente, e tal como já aqui se defendeu (coluna do provedor de 29.2.2004), a propósito da regulação dos media, seria razoável que a sociedade fosse auscultada sobre algumas das medidas que se anunciam. Associações de telespectadores e de consumidores, instituições culturais e profissionais, centros especializados de investigação e de ensino têm uma palavra qualificada nesta matéria. Não tanto nas suas minudências ou nos seus aspectos técnico-jurídicos, mas nas opções que as inspiram e nos objectivos que as norteiam. Participar no processo de tomada decisão constitui uma forma de tomar consciência dos direitos e responsabilidades dos cidadãos face aos media, em particular os audiovisuais. Essa tomada de consciência é um requisito para o exercício de tais direitos e responsabilidades.

Não vai ser fácil implementar a ideia do Governo’