‘‘A escrita jornalística é apressada por obrigação’, afirmava recentemente o escritor Mário Ventura Henriques, em entrevista ao jornal ‘A Página da Educação’. Recordava, depois, os seus tempos de jornalista, no ‘Diário Popular’: ‘Havia uma imposição de horas, de prazos e isso obrigava-nos quase a uma escrita automática, de jacto, não havia tempo para meditar’. E passava, finalmente, ao comentário sobre a impressão que lhe deixa a imprensa actual: ‘o que me querem impingir hoje é de uma falta de qualidade atroz: sintaxe não existe e erros de ortografia não faltam’ (nº 134, Maio de 2004).
Não me custa a crer que a qualidade da escrita fosse, noutros tempos, mais cuidada. Tenho, contudo, dúvidas de que o panorama actual possa ser tão negro como acaba de ser pintado. Ainda assim, reconheço que é altamente incomodativo e preocupante encontrar atropelos à língua, tanto sintácticos como ortográficos, sobretudo quando eles se repetem e vulgarizam.
As tropelias com o uso do verbo haver (‘só numa manhã, houveram três incêndios’; ‘as testemunhas que há data trabalhavam na propriedade…’) ou do verbo tratar (‘Tratavam-se de assuntos certamente importantes’); a indevida contracção da preposição de com o artigo nos casos em que o verbo da frase seguinte se encontra no infinitivo (‘o dirigente mostrou-se preocupado com o facto do Governo ter incluído o assunto…’); o uso incorrecto de expressões verbais (‘depois de tudo o que batalhei, isto é muito frustrante’ ou ‘a música que eu gosto’) – tudo são casos (reais) que não podem passar sem reparo e sem a exigência de medidas de correcção.
Foi sobre este assunto que o leitor Mário Pinto, de Vila Nova de Gaia, enviou recentemente uma mensagem ao provedor. Nela (se) interroga se os direitos dos leitores ‘estão a ser respeitados num jornal – que, segundo o auto-elogio de página inteira (p. 68 de 18/7/2004), é o ‘1º em leitores’, ‘1º em vendas’, ‘1º aos fins-de-semana’, ‘1º na imprensa diária’ e ‘1º nos desportivos’ – em que numa única edição, a de 19 de Setembro último, ‘e isto sem ser exaustivo’, o leitor identifica uma ‘pletora de `pérolas´‘ que deram para preencher quase três páginas de anotações. Os exemplos inventariados ‘falam’ por si: ‘Sigfried Krauss, hoje com 44 anos, optou em 1987, ficar definitivamente em Beja’; ‘Tony Blair saiu irritado da cimeira com a atitude do partido’; ‘As chamas depressa se alastraram’; ‘…pelo que se aguardam que os resultados da investigação sejam levados ao Ministério Público’; ‘Noiva sempre sonhou andar de helicóptero e realizou-o no dia do seu casamento’.
Alguns casos referenciados não passam de gralhas que é quase impossível evitar, tendo em conta as condições de pressão em que cada edição é preparada. Mas, no essencial, o leitor tem razão. Não é aceitável que um jornal com as responsabilidades do JN deixe passar certos erros.
O director de Redacção, José Leite Pereira, confrontado com o problema, reconhece que o esforço de combate aos erros e gralhas ainda não foi bem sucedido. Há três ou quatro pessoas do ‘desk’, cujo trabalho envolve responsabilidades neste âmbito, o que Leite Pereira reconhece ser manifestamente pouco – e é ainda menos nos dias em que há folgas. A leitura de revisão ocorre, por vezes, em cima da hora do fecho, não permitindo a eficácia devida. Mas há outro nível, não menos decisivo, porquanto constitui a primeira etapa de revisão, que é a dos próprios jornalistas que escrevem as peças e a dos editores que as revêem e lhes dão seguimento. Também aqui as falhas existem.
A delicadeza do trabalho de pôr diariamente um jornal nas bancas é de tal ordem que se chega a cometer erros, mesmo quando tudo está certo. Ilustro com um caso de há dias: na edição da passada terça-feira, dia 28, abrindo o JN na página 15, todos os títulos da secção de Economia se repetem quanto à sua estrutura (‘Petróleo poderá atingir 60 dólares por barril; ‘Contrato social pode ficar pelo caminho’; e ‘Pensões da CGD podem dar `ajuda´ ao défice’; a página anterior ainda acrescenta mais um do mesmo jaez: ‘Adesão turca pode vir a ser referendada pelos estados’). E, no entanto, cada título, individualmente considerado não tem nada que se lhe aponte.
O leitor certamente aceitará que se possam cometer erros. Mas exige que se tomem medidas e se instituam mecanismos de revisão eficazes para atenuar o problema. Uma notícia pode estar tecnicamente impecável, mas se tem uma ‘calinada’ no meio (ou mais ainda no título) gera um ruído que lhe compromete o sentido. E quando isso acontece de forma continuada é a imagem dos jornalistas que sai afectada e, com isso, o próprio jornal que se ressente.
É verdade que, como escrevia o jornalista Sérgio de Andrade, na edição do mesmo dia 28, ‘hoje há alunos com diversos anos de escolaridade que não hesitam em conjugar o verbo ‘tar’: ‘tou convencido!’. A falta de leitura de boa literatura pode contribuir para uma escrita marcada pela (por vezes deficiente) oralidade. Mas até por essa razão o cuidado com a qualidade da escrita da imprensa deve ser redobrado.
Tenho dúvidas que o panorama possa ser tão negro como é pintado
Governo cria ‘central’ de comunicação
O Conselho de Ministros aprovou, na passada quinta-feira, numa reunião realizada em Coimbra, a criação de um Gabinete de Informação e Comunicação que passará a centralizar toda a actividade de comunicação e imagem do Governo e da administração do Estado. Segundo o JN de sexta-feira, a nova estrutura contará com um número de colaboradores entre 25 e 30.
O tema da comunicação governamental tem sido recorrente, quer com o primeiro-ministro anterior quer com o actual. De facto, nas sociedades mediatizadas, é uma questão-chave, qualquer que seja o executivo em funções.
A decisão governamental de se organizar para comunicar com eficiência com os jornalistas e os media é legítima e de efeitos potencialmente positivos. Mas só quem não sabe nada de sociologia política, de comunicação estratégica ou, mais chãmente, da experiência da vida, é que pode ignorar o desafio que uma tal medida encerra para o jornalismo sério e independente. De resto, têm-se vindo a multiplicar os alertas para esses riscos.
Entendo que as fontes têm todo o direito de se organizar, profissionalizar e procurar visibilidade pública, desde que o façam por processos leais (e, no caso dos governos, por processos transparentes e escrutináveis). Mas há riscos evidentes em tudo isto e os jornalistas conhecem-nos bem. De resto, todos sabemos que os tempos não correm de feição para o distanciamento, o equilíbrio e a vigilância.
‘Setúbal na Rede’ com provedor
O jornal digital ‘Setúbal na Rede’ (www.setubalnarede.pt) acaba de instituir a função de provedor do leitor e de divulgar o respectivo estatuto. A iniciativa, pioneira, entre nós, na área do jornalismo digital, inscreve-se num esforço daquela publicação de se assumir como ‘agente de desenvolvimento da região onde se insere’.
A principal missão do provedor do leitor consiste em ‘atender às reclamações, dúvidas e sugestões dos leitores e em proceder à análise regular do jornal, formulando críticas e recomendações’. A novidade, neste caso, assenta no facto de o cargo ser rotativamente.’