Thursday, 14 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Manuel Pinto

‘A passagem de um ano para outro costuma ser tempo para balanços e planos. São formas ritualizadas de assinalar percursos, de olhar trajectórias feitas e de desenhar, ou simplesmente sonhar, os próximos passos. No jornalismo, e em particular no jornalismo diário, tais momentos são ainda mais necessários, visto que a vertigem dos dias deixa pouco espaço ao ‘olhar distanciado’ que é, no entanto, vital à melhoria do mesmo jornalismo. Acresce que o ano que estamos prestes a ver terminado foi tudo menos tranquilo e linear, a exemplo dos que o antecederam, quer o miremos de um ponto de vista internacional quer à escala do nosso país.

Olhando retrospectivamente para 2004, sou levado a concluir que, no que ao jornalismo diz respeito, andamos ‘às apalpadelas’, tacteando no meio da noite, sem sabermos muito bem o terreno que pisamos e, menos ainda, o caminho para onde estamos a ser empurrados (para já não falar no caminho por onde queremos ir).

Em termos nacionais, não se pode falar do jornalismo sem tocar nessa ‘história interminável’ de subterrâneos escuros e pegajosos que é o processo da pedofilia e o modo como a comunicação social o tem vindo a cobrir. Curiosamente, este jornal viu-se envolvido, logo na abertura do ano, numa das polémicas que o caso conheceu, ao dar a conhecer que nomes de titulares de altos cargos públicos se encontravam referenciados no processo, num contexto que poderia indiciar comportamento censurável. O controverso assunto, que motivou uma tomada de posição do presidente da República, trazia para a ribalta dois problemas que convivem mal entre si o direito dos cidadãos ao conhecimento do modo como funciona o sistema judicial, por um lado, e o segredo de justiça, por outro. A questão do segredo de justiça e, mais amplamente, a relação entre o sistema judicial e os media continua a carecer de clarificação e debate, apesar dos pequenos e tímidos sinais de que cresce a consciência da magnitude da questão.

O processo Casa Pia voltaria a motivar inquietação em vários outros momentos, pelo modo como uma parte dos jornalistas o cobriram, nomeadamente a propósito do caso das cassetes desaparecidas da redacção do Correio da Manhã (contendo entrevistas a pessoas que, em alguns casos, não sabiam que estavam a ser gravadas quando falaram) e, sobretudo, aquando da libertação de Carlos Cruz, no começo de Maio, e no início do julgamento, já em finais de Novembro. As cenas a que então voltamos a assistir foram de um empolamento e sensacionalismo tais, que ficarão como momentos altos (e tristes) de uma trajectória de descrédito da profissão. São sobretudo as televisões e mais meia dúzia de outros jornalistas, mas transmitem à opinião pública a ideia de que, no seu todo, estes profissionais são mais uns mastins de caça sedentos de espectáculo do que informadores vigilantes e responsáveis sobre aquilo que é relevante e necessário ao esclarecimento dos cidadãos. E a gravidade destes comportamentos, que contam com suporte, se não mesmo acicate, de chefias e responsáveis de alinhamentos, não reside apenas nos estragos que provocam, mas talvez sobretudo, na sombra em que lançam o trabalho sério e rigoroso de muitos outros profissionais.

Outro grande dossiê em que o jornalismo esteve de novo à prova relacionou-se com a sucessão de casos indiciadores de que o poder político, e sobretudo governamental, convive pessimamente com a independência dos media e que a liberdade de imprensa continua a ser, em muitos sentidos, mais uma luta a travar do que uma conquista a defender. Todos se recordarão do modo como Marcelo Rebelo de Sousa foi ‘despedido’ da TVI; do processo rocambolesco da substituição de direcção do Diário de Notícias, após as mudanças na direcção da empresa a que pertence; da ligação do Estado ao grupo PT e o papel deste grupo no terreno mediático; e, ainda, da queda da Direcção de Informação de José Rodrigues dos Santos na RTP. Estes foram alguns dos casos que, em cascata, desde Outubro para cá, criaram o desassossego e deram todo o gás às teorias conspiracionistas, de que a já célebre e abortada ‘central de comunicação’ constitui expressão maior.

O ano termina com um jornalista a ser condenado em tribunal por se recusar a violar o código deontológico da profissão, que o manda não revelar as suas fontes confidenciais de informação. Não vi ninguém considerar quixotesca a atitude desse jornalista. O que já não é mau nos tempos que correm. Está longe de ser o único sinal positivo que emerge da profissão (recordo, para dar exemplos, a recusa do realizador Ricardo Espírito Santo, da Sport TV, de passar imagens chocantes da morte de Fehér; o reconhecimento público do trabalho de Ana Sousa Dias, no canal A Dois; ou o espaço de debate sobre o próprio jornalismo, aberto, no mesmo canal, pelo Clube de Jornalistas, complementado por um ‘site’ na Internet e por uma revista trimestral). São sinais de que a profissão e o jornalismo, apesar de ameaçados, estão habitados pela complexidade e pela contradição, o que faz deles um espaço vivo. Mas que não pode medrar em contextos institucionais em que o critério dominante seja o já célebre ‘quem tem ética passa fome’.’