‘Quem fosse ao quiosque ou à banca de jornais, na passada quarta-feira, encontraria um cenário inédito na história da nossa Imprensa todos os principais diários – os desportivos incluídos – apareciam com a capa impressa em fundo azul-marinho. Coisa bizarra, terá pensado o leitor mais atento, sem, à primeira, atinar com o mistério de tal banho de tinta.
O motivo revelar-se-ia, afinal, bem simples uma das empresas operadora de telecomunicações móveis decidira gastar uns incertos milhões de euros a renovar a marca, alterando o logótipo, a cor e o ‘slogan’ e, da estratégia delineada, fez parte este ‘assalto’ de surpresa aos espaços mais nobres dos jornais do dia 28. Naquela quarta-feira, pareceria, a um olhar atento, que todos os diários, incluindo os desportivos, esqueceram por uma vez a concorrência e a identidade própria, e aceitaram passar-se para as mãos azuis de um poderoso anunciante.
A narração e a avaliação de um episódio deste tipo podem, seguramente, adoptar distintas perspectivas. A operadora de telemóveis e as empresas envolvidas na concepção e realização mobilizam todos os recursos para tornar eficaz a mudança de imagem. No interior dos jornais, o sector comercial esfregará as mãos de satisfação pelo negócio assim conseguido. Restam, aqui, dois outros pontos de vista que também têm, ou deveriam ter, uma palavra na matéria os jornalistas e direcções editoriais, por um lado, e os leitores, por outro.
Mas, antes de irmos a estes lados, convém referir que a ‘operação azul’, chamemos-lhe assim, não se limitou ao banho colorido da primeira, segunda, penúltima e ultima páginas. No caso do JN, o facto de a página final ter sido ocupada com um anúncio fez saltar para a página anterior todo o conteúdo que aí costuma a aparecer. Outros jornais houve em que a mancha gráfica da primeira página se viu reduzida para conferir destaque a elementos da campanha publicitária. Num ou noutro caso, chegou a verificar-se forte ‘ruído’ entre a cor invasiva do anúncio e conteúdos noticiosos, como aconteceu, por exemplo, no JN com o aniversário do Futebol Clube do Porto, que nesse dia também ocorreu, e, num outro diário, com o ‘saco azul’ que, afinal, não é, pelos vistos, apanágio só de Felgueiras.
Logo no dia deste jornalismo azul, multiplicaram-se os comentários e as tomadas de posição. Merecem aqui destaque os blogues, essa ferramenta da Internet que tem vindo a facilitar o acesso à palavra e à expressão de um crescente número de cidadãos (e a que brevemente farei mais pormenorizada referência nesta coluna). Destaque merece igualmente o comunicado que, a propósito, difundiu o Sindicato dos Jornalistas (SJ), o qual dirigiu expressamente um apelo às direcções editoriais dos jornais, aos conselhos de redacção e aos provedores do leitor para que reflictam sobre os limites da publicidade. Quais as linhas de força de tais comentários? Em primeiro lugar, ‘a submissão dos órgãos de comunicação ao recurso publicitário utilizado’, que o SJ, por exemplo, considera ‘chocante’. Em segundo lugar, a interferência desta campanha com o conteúdo editorial de espaços nobres, em alguns casos de forma ostensiva. Em terceiro lugar, a diluição de fronteiras entre o que é notícia e o que é publicidade.
Se estas inquietações constituíssem motivo de preocupação junto do comum dos leitores, o provedor deveria ter recebido uma avalancha de reacções sobre o assunto. Mas não foi o caso. E sou mesmo levado a pensar que, salvo uma minoria de observadores atentos, a generalidade não chegou a aperceber-se do que se passou e muito menos do seu significado. Todavia, nem isso nega que possam existir inquietações nem retira pertinência à reflexão necessária sobre o caso.
No que ao Jornal de Notícias diz respeito, a Direcção, a quem solicitei um comentário sobre o assunto, reconhece que uma matéria destas é motivo de incómodo, porque pode criar a ideia de que quem ‘vende’ assim os espaços mais destacados do Jornal, também pode vender o resto, minando dessa forma o crédito e prestígio junto dos leitores. Mas o director, José Leite Pereira, assegura ter-se tratado de um caso excepcional, que não afectará a linha editorial do Jornal. Salienta, de resto, que o Jornal tem sido cuidadoso, noutras circunstâncias, em não aceitar publicidade que possa trazer exigências ou implicações para o conteúdo editorial.
Este provedor entende que, mesmo perante processos de uma dimensão quase transcendente, há um recurso de que as Redacções podem deitar mão e que, neste caso, não foi feito é explicar aos leitores a situação criada, as opções ponderadas e os porquês e condicionantes da solução final. Isso é sempre melhor do que nada. E não é pouco, porque torna público que, por detrás de um resultado, de um ´’produto’, existe sempre um processo, por vezes bem tumultuoso e emaranhado. Sem introduzir esse lado, o jornal e os jornalistas não salvaguardam devidamente o contrato que têm com os leitores de lhes proporcionarem uma informação rigorosa, independente e completa.
Salvaguardar sempre o contrato de confiança com os leitores’