Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Marcelo Beraba

‘Difícil dizer se esta é a maior crise da história das empresas jornalísticas brasileiras. Mas é uma crise enorme, daquelas que parecem que nunca vão acabar, a maior, com certeza, que a minha geração de jornalistas jamais vivenciou.

1. Os dados são conhecidos, mas vale resumi-los: dívidas estimadas em R$ 10 bilhões (a maior parte em dólar), 17 mil vagas de trabalho cortadas em dois anos, queda de circulação de jornais e revistas.

2. As razões de tamanha catástrofe ainda não foram completamente estudadas, mas alguns elementos são visíveis. A primeira metade da década de 90 foi de pura euforia para as empresas de comunicação. A circulação dos jornais aumentou ano após ano. A espiral de crescimento, alimentada pela estabilização e pelo fortalecimento da moeda, por investimentos em tecnologia e pelas agressivas estratégias de marketing, parecia não ter fim. As empresas acreditaram de fato nas previsões de crescimento econômico e se endividaram pesadamente em dólar para continuar a se expandir.

3. Em janeiro de 99, elas foram pegas no contrapé com a desvalorização do real e, na seqüência, com a estagnação da economia e a queda de renda. As dívidas em dólar se tornaram um pesadelo. E as principais fontes de receita ficaram comprometidas: o bolo publicitário diminuiu (e passou a ser mais disputado) e caiu o número dos que compram em banca ou assinam jornais e revistas.

4. As conseqüências da crise estão expostas: economia de papel, demissões, achatamento salarial, perda de profissionais qualificados, fragilização das Redações e retração total das empresas. Passamos a viver parecidos com o Brasil: no sufoco para produzir resultado (superávit) e pagar dívidas. Nada de investimento. O estrago é visível a olho nu.

5. Há quem diga que 2002 foi o fundo do poço e que agora as coisas começam a mudar. De fato, o mercado publicitário teve uma pequena reação, pequena: cresceu em 2003, descontada a inflação, 2,9% em relação a 2002. Mas a circulação dos jornais continuou a cair: era de 7 milhões de exemplares por dia em 2002 e em 2003 foi de 6,5 milhões por dia, uma queda de aproximadamente 7%.

6. O que interessa aos leitores de jornais é saber se a crise afeta a qualidade do produto que recebe e sua independência editorial.

7. A maior ameaça à independência das empresas de comunicação está nelas mesmas. A crise se traduz em pressões pela flexibilização dos procedimentos internos que protegem as Redações de picaretagens e negociatas. A pressão aumenta com a necessidade de resultados financeiros, mas a submissão da Redação resulta em perda de credibilidade e de prestígio. O barato sai caro. Otavio Frias Filho, diretor de Redação da Folha, tocou no problema recentemente em entrevista para o site No Mínimo. É bom que os executivos de jornais discutam isso abertamente. Frias Filho detecta um retrocesso: ‘A famosa separação entre Igreja e Estado, que é a gíria para designar a separação entre Redação e publicidade (…) que se cristalizou felizmente nos principais centros urbanos do país na segunda metade dos anos 50 e no começo dos anos 60, essa separação está sendo enfraquecida’.

8. No capítulo independência, também será importante acompanhar o pedido de socorro das empresas jornalísticas ao governo federal. Algumas das maiores procuraram o BNDES em busca de recursos públicos para pagar dívidas, comprar papel e iniciar novos investimentos. Em tese, é legítimo, um direito de qualquer segmento da economia. O problema é como se dará essa operação. Será um desgaste grande para as empresas se houver qualquer sorte de privilégio ou se elas se submeterem aos desígnios do governo. Em entrevista para o site do AOL, o publisher da Folha, Octavio Frias de Oliveira, tocou no problema. Questionado sobre as negociações com o banco estatal, ele foi direto ao ponto: ‘Eu tenho um receio muito grande. Isso tende a interferir. Para falar claramente (…), o que interessa ao governo é a mídia de joelhos. Não uma mídia morta. Uma mídia independente não interessa a governo nenhum. Dentro desse princípio é difícil ver essa questão do BNDES. Por que criar um sistema assistencial, preferencial para os jornais, para a mídia?’.

9. Qualidade. As metas de excelência do jornal estão definidas no seu ‘Manual da Redação’ e no seu Projeto Editorial de 1997, que está sendo revisado e reescrito. Em linhas gerais, o jornal persegue um jornalismo crítico, moderno, pluralista e apartidário. Esses propósitos, que vêm desde o primeiro Projeto Editorial, de 84, não são mais suficientes para definir um jornal que seja indispensável, confiável e prazeroso, com notícias precisas, contextualizadas e bem escritas, com um cardápio diversificado, instigante e inteligente. É necessário que a Folha, para firmar sua ‘singularidade e relevância’, dê um salto de qualidade.

10. O tamanho da crise e o imperativo da sobrevivência afastaram as empresas jornalísticas e os jornalistas de questionamentos importantes que outros países experimentam neste momento sobre o papel da mídia e suas contradições. Alguns casos recentes exigem reflexão. Nos Estados Unidos, o ‘New York Times’ e outros colossos da imprensa revisaram seus procedimentos de apuração por conta da descoberta de vários casos de fraudes jornalísticas, de reportagens simplesmente inventadas. Ainda nos Estados Unidos e em países da Europa, vários jornais e redes de TV foram submetidos à lógica do patriotismo e abandonaram a independência crítica por conta de pressões do governo ou do repúdio espontâneo ao terrorismo e estão todos hoje mais sujeitos às manipulações oficiais.

11. O grande desafio da Folha -e, de resto, de todos os jornais- é superar a crise (pagar suas dívidas, voltar a investir e a crescer) sem abrir mão de duas obsessões: manter a independência crítica e dar um salto na qualidade do jornal que entrega diariamente. O que está em jogo é o principal patrimônio de um jornal, a credibilidade.

O mandato de ombudsman que ora se inicia coincide com este período complicado da imprensa brasileira. Espero ajudá-la a sair melhor e mais forte. Para isso, estou à disposição dos leitores. E que a crise nos seja breve!

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Converso por telefone com Nei José Pereira, 49, leitor da Folha, contador. Pergunto se confia na imprensa. ‘Confio, mas com um pé atrás, desconfiando muito.’’