‘Na semana em que todos os jornais noticiaram com destaque os resultados das pesquisas que mostram queda do desemprego, recuperação da renda e forte otimismo dos empresários com os rumos da economia brasileira, a Empresa Folha da Manhã, que edita a Folha, fez o caminho inverso e executou o corte mais forte de funcionários desde que entrou em crise, há mais de dois anos, por conta da explosão de uma dívida de R$ 290 milhões.
A Folha não noticiou suas próprias demissões.
Não é o primeiro corte que o jornal faz nem a única empresa de comunicação a fazê-lo. Mas esse ‘ajuste’, para usar o termo caro às consultorias, tem características próprias que devem ser analisadas. Antes, os números e informações de que disponho, sem confirmação oficial.
A dimensão
Foram demitidos da empresa, ao longo da semana, cerca de 200 dos quase 1.300 funcionários, o que representa um corte de 18% das despesas com pessoal.
Nas Redações da Folha, da Revista da Folha, do Folha Online, da Agência Folha, dos cadernos regionais, do Banco de Dados e do Agora foram 85 pessoas, sendo que 60 jornalistas.
Na Redação da Folha, principal título da empresa, foram demitidos 35 jornalistas e alguns colunistas foram terceirizados. Nem todas as vagas serão fechadas: deverão ser contratados 13 novos profissionais, mas com salários muito mais baixos.
Diferentemente de outros cortes, esse atingiu a elite do jornal. Foram demitidos cinco editores, um fato inédito na história da Folha se consideramos apenas cortes por razões financeiras. Entre os demitidos (agora ou no futuro próximo), estão vários jornalistas com mais de 20 anos de profissão e com especializações em áreas complexas, como ciências, saúde e economia.
Os cortes extinguiram um produto, o caderno regional de Campinas, e, internamente, atingiram o Programa de Qualidade, um dos pilares, junto com o Programa de Treinamento, do esforço planejado de melhoria do jornal.
O Programa de Qualidade, implantado em 1996, era responsável pelo controle diário de erros gramaticais, de padronização e de digitação. Todos os seus funcionários foram demitidos ou transferidos, e o controle passará a ser feito de forma seletiva.
O impacto das medidas é maior porque incide sobre outros cortes de despesas, pessoal e produtos feitos desde o início de 2002.
As razões
E por que mais esses cortes, depois de tantos outros e no momento em que a economia brasileira parece sair da estagnação?
A Folha não respondeu.
Recebi do diretor de Redação, Otavio Frias Filho, por escrito, a seguinte declaração: ‘Lamentamos a perda de profissionais valiosos, muitos deles com longo histórico de dedicação ao jornal. Foram medidas duras, mas necessárias para assegurar ao jornal condições de vencer mais rapidamente essa conjuntura adversa -e de fazê-lo sem riscos para a independência editorial’.
Há duas hipóteses possíveis para os cortes.
A primeira, um forte ajuste interno para preparar a empresa para a entrada de um sócio estrangeiro, como acaba de ocorrer com o grupo Abril, que vendeu 13,8% de ações para fundos de investimento norte-americanos.
A outra hipótese é, na verdade, a razão apresentada extra-oficialmente pela direção do jornal nas conversas com alguns demitidos e com os editores que sobraram.
A empresa teria tomado essas medidas para apressar a liquidação da dívida do jornal. É importante a distinção: a dívida do grupo é de R$ 290 milhões, segundo reportagem publicada pela própria Folha em 15 de fevereiro. Mas a dívida do jornal é menor, e seria de R$ 160 milhões.
O que se ouve é que a rentabilidade do jornal é alta (17%), os juros (20% da dívida ao ano) estão sendo pagos, mas o ritmo de abatimento da dívida é lento e ameaçador.
O que a empresa pretende, portanto, com esses cortes, pelo que foi possível captar em diversas áreas do jornal, é melhorar seu resultado financeiro, se possível ainda neste ano, e encurtar o período chamado internamente de ‘travessia do deserto’.
As demissões ocorreram depois de dois meses de trabalho da empresa de consultoria Integration, que tem escritórios em São Paulo e no Rio. Antes, o jornal tentou vender ativos, sem sucesso, e passou pela experiência da negociação, frustada até agora, com o BNDES.
‘O Estado’, seu principal concorrente na praça de São Paulo, e a Abril também contrataram consultorias, mas fizeram seus ajustes em períodos mais longos, não de forma tão abrupta como faz agora a Folha. Depois dos cortes e mudanças que introduziu no ano passado, o ‘Estado’ teve um resultado financeiro bem superior ao da Folha.
O futuro?
O que vai acontecer com a Folha? Terá de continuar a produzir o jornal que promete -informativo, crítico, pluralista, apartidário, moderno, imprescindível- com menos gente e reduzido espaço editorial.
O produto que tem sido feito já é irregular. O achatamento salarial que virá e a perda de jornalistas especializados e experientes terá conseqüências. O leitor deve ficar atento, cobrando qualidade e equilíbrio.
Há um outro aspecto negativo nesse episódio, que é o silêncio do jornal. Por que não noticiou suas próprias demissões?
O jornal, que tem a obrigação de cobrir as crises dos governos, das empresas públicas e das empresas privadas, optou por não soltar nenhum comunicado oficial, e isso é um erro.
A sociedade reivindica, cada vez mais e com razão, transparência por parte dos meios de comunicação. A saúde financeira dos jornais interessa aos seus leitores porque está em jogo a independência e a credibilidade desses veículos que eles escolheram para comprar, se informar e interagir.’
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‘Escravos e espiões’, copyright Folha de S. Paulo, 25/7/04
‘Na semana em que viveu sua pior crise, a Folha publicou duas das melhores reportagens do ano.
No domingo, 18, a repórter Elvira Lobato assinou a manchete do jornal, ‘Lavoura moderna ainda usa escravidão’. Embora o trabalho escravo não seja um assunto novo, a reportagem conseguiu mostrar, a partir de um levantamento de informações inéditas e do trabalho de campo no sul do Pará, que mesmo a agricultura e a pecuária mais avançadas, voltadas para a industrialização e a exportação, se beneficiam dessa aberração.
E na quinta, 22, o editor do caderno Dinheiro, Márcio Aith, revelou que integrantes do primeiro escalão do governo federal vinham sendo espionados por uma empresa privada, a Kroll.
As duas reportagens foram feitas por dois dos jornalistas mais experientes do jornal.’