‘Encerra-se hoje, com a ida às urnas, o primeiro turno das eleições municipais. A Folha e seus principais concorrentes cobriram bem a campanha? O leitor que acompanhou a disputa pelos jornais ficou bem informado? Sim e não.
Há um dado positivo na cobertura dos grandes jornais, principalmente na Folha e no ‘Globo’: a preocupação em monitorar de perto o financiamento das campanhas e em colocar uma lupa no enriquecimento patrimonial dos políticos.
As doações eleitorais têm sido fonte permanente de corrupção. É um fenômeno antigo. Os jornais cumprem papel importante quando pressionam os poderes da República por mais transparência e controle e quando revelam casos concretos de corrupção ou de promiscuidade.
A Folha expôs pela primeira vez como grandes financiadores das campanhas do PT e do PSDB driblaram a legislação eleitoral e camuflaram suas doações, repassando-as diretamente para os partidos, evitando que aparecessem nas prestações de contas dos candidatos.
Outro fenômeno antigo é do enriquecimento que uma boa parte dos políticos experimenta no exercício de cargos eletivos. A Folha tem tradição de cobertura nesta área, e a manteve nesta eleição, quando registrou o aumento do patrimônio do candidato a vice de José Serra, Gilberto Kassab.
Mas a maior contribuição partiu do ‘Globo’, que levantou no tribunal eleitoral todas as declarações de bens de deputados estaduais e vereadores, complementou as informações com buscas em cartórios e juntas comerciais, e mostrou como os políticos do Rio tiveram crescimentos patrimoniais acelerados.
Equilíbrio
Diria que esse ânimo investigativo foi o ponto positivo das coberturas. No mais, elas deixaram expostas várias deficiências graves dos jornais.
A mais importante, a falta de equilíbrio no acompanhamento das várias candidaturas, já tratei em três outras colunas, e não pretendo me estender novamente sobre o assunto.
Embora tenha observado mais a Folha, deve ser dito que a falta de equilíbrio foi um ponto comum a todos os três grandes jornais, como é possível constatar pela leitura diária e pelo levantamento feito a partir de abril pelo Laboratório Doxa/Iuperj (http://doxa.iuperj.br).
Marketing e intrigas
Há um outro ponto que considero uma deficiência antiga e grave nos jornais e que, mais uma vez, não conseguiram superar: é a quase total submissão às intrigas, aos jogos de cena pautados pelos marqueteiros e aos discursos vazios dos candidatos.
Esse tipo de cobertura acaba dando espaço exagerado, e às vezes carregado de um tom sensacionalista, para a troca de baixarias entre os candidatos, para os seus trejeitos, para promessas irrealizáveis, e para detalhes insignificantes que logo desaparecem.Os jornais não conseguiram impor aos candidatos questionamentos que permitam aos leitores conhecer o que realmente pretendem realizar. As grandes questões foram omitidas, com exceção, no caso de São Paulo, do endividamento da cidade e uma ou outra discussão sobre saúde, educação e transportes.
Os problemas estruturais da cidade mal foram discutidos. Os temas mais delicados -expansão das favelas, domínio do narcotráfico, extensão dos serviços para as regiões hoje excluídas, carga tributária, vocação econômica da cidade, emprego- ou foram evitados ou foram tratados de forma superficial e demagógica. E os jornais não cobram.
Foi assim com as chacinas de moradores de rua. Mais de 10 mil pessoas perambulam pela cidade sem casa e sem trabalho. É uma questão complexa, que não se resolve com paliativos. Como enfrentar? As mortes foram tratadas como caso policial, os candidatos ignoraram o problema, a Folha fez um debate superficial e pronto.
Os candidatos impõem os temas que lhes interessam, e não os que interessam à cidade, e os jornais se submetem.
Segundo turno
As coberturas dos jornais revelam outra deficiência: a incapacidade, no dia-a-dia, de associar as notícias políticas às econômicas, de buscar um nexo entre o que é relatado, no caso da Folha, no caderno Brasil com o que é editado em Dinheiro e com o que acaba saindo em Cotidiano. É como se a eleição estivesse desligada dos fatos políticos e econômicos e das decisões administrativas.
Pedi ao editor de Brasil, Fernando de Barros e Silva, responsável pelo caderno Eleições 2004, uma previsão do que pretende fazer no segundo turno. Transcrevo: ‘O jornal deve aprofundar a cobertura ao mesmo tempo crítica e equilibrada dos principais temas da administração e das propostas dos candidatos, procurando esclarecer o mérito das questões que surgem no bate-boca entre eles. Prevejo a campanha mais acirrada que já houve em São Paulo desde a redemocratização do país. A análise política do impacto da eleição em São Paulo, e da correlação de forças que sairá das urnas em âmbito nacional, terá que ser aprofundada. Seu ponto de fuga é o jogo sucessório de 2006, e o jornal tem o dever de iluminá-lo desde já’.
Espero, sinceramente, que consiga. Mas acho difícil.
Os jornais devem se perguntar se o modelo de cobertura eleitoral que praticamos há anos não está esgotado, porque leva a um noticiário superficial e descartável.’
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‘‘Faltou discussão’’, copyright Folha de S. Paulo, 03/10/04
‘Fernando Azevedo é cientista político, professor da Universidade Federal de São Carlos e coordenador do Grupo de Mídia e Eleição da Anpocs (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais).
Ombudsman – Os jornais cobriram bem o primeiro turno?
Fernando Azevedo – Cobriram a corrida eleitoral e a competição retórica entre os candidatos. Acho que isso empobrece a cobertura, porque não leva a discussões mais amplas sobre as questões da cidade. Falta aos jornais contrapor a sua própria pauta às pautas dos candidatos, impor a discussão de uma agenda pública sobre as questões da cidade. Isso esteve ausente. Vejo esses problemas tanto nas coberturas como nas páginas de opinião.
O período eleitoral é um momento crítico nas democracias, em que o cidadão tem a oportunidade de discutir as propostas políticas e administrativas. Acho que os jornais diários têm uma capacidade maior de sugerir agendas públicas e de pautar os outros veículos, como a televisão. Por isso, acho fundamental os jornais contraporem uma agenda de discussão que não seja a mesma dos candidatos.
Ombudsman – Esta eleição foi diferente das outras? Se sim, os jornais souberam captar essas diferenças?
Azevedo – Não houve novidades. A discussão ficou dentro do enquadramento municipal. Foi uma discussão mais administrativa. Não foi nacionalizada, salvo no final, quando apareceram os padrinhos políticos, no caso Alckmin e Lula. Ficou também muito centrada na biografia e personalidade dos candidatos.
Ombudsman – O leitor que acompanha a eleição pelos jornais está bem informado?
Azevedo – Está razoavelmente informado em relação às campanhas, mas não em relação às discussões programáticas.
Ombudsman – Os jornais de São Paulo fizeram coberturas equilibradas?
Azevedo – Acho que no pleito de 2000 o equilíbrio foi mais visível. Houve um relativo equilíbrio, que fica claro quando você separa a opinião da cobertura eleitoral. Nessa, não houve.
Ombudsman – A que você atribui isso?
Azevedo – Não sei exatamente. No caso do ‘Estado’, eu acho que é uma opção editorial de apoio à candidatura do Serra. No caso da Folha, eu acho que a lógica é diferente. A Folha aposta naquela sua postura de fiscal do poder, de cão de guarda. Acho que exagerou. Muitas vezes comprou a agenda de adversários da Marta. O jornal deveria ter pesado isso.
É verdade, e tem de ser acrescentado, que a personalidade da Marta enseja reportagens críticas.’