Thursday, 14 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Marcelo Beraba

‘O Rio vive um estado de guerra civil? A violência que irrompe nas suas favelas pode ser comparada aos conflitos na Tchetchênia e no Sudão? A cidade está à beira do abismo por conta do narcotráfico?

A discussão, que me parece inútil, retornou, mais uma vez, por conta da publicação, dia 12, no diário britânico ‘The Independent’, da reportagem ‘A cidade da cocaína e da carnificina’. O texto provocou reações emocionadas e uma carta de protesto do governo do Rio endereçada ao governo britânico.

A discussão me parece inútil porque, independentemente dos exageros que a reportagem possa conter, na sua essência ela está correta: é gravíssimo o problema da violência em cidades como Rio, São Paulo e Belo Horizonte, para ficar nas maiores da região mais rica do país.

Os fatos narrados diariamente pelos jornais mostram como estas cidades estão conflagradas, principalmente em suas regiões mais pobres dominadas pelos comandos que guerreiam entre si e enfrentam, de igual para igual, as forças policiais.

O que me preocupa mais não é a realidade, de resto já conhecida, descrita na reportagem do ‘Independent’, mas outra questão: os jornalistas do Rio que estão na linha de frente da cobertura desta ‘guerra’ têm condições de exercer seu ofício com segurança e independência?

Depois do assassinato do repórter Tim Lopes, da TV Globo, em junho de 2002, ficou muito difícil entrar nas favelas. Isso significa que estamos deixando de fornecer aos leitores informações colhidas in loco, e que temos hoje praticamente uma única fonte de notícia, a polícia.

Vivemos um conflito: ou nos arriscamos para garantir o direito dos leitores de acesso a informações e o direito dos moradores dos bairros ocupados de se manifestar e contar as suas versões dos fatos, ou os privamos desses direitos em nome da segurança, o que é legítimo, mas angustiante.

Essa questão, que apenas mencionei na coluna ‘A nossa guerra na mídia’ (18/4), retorna com força por uma razão: a seqüência de episódios de risco vividos pelos repórteres do Rio nas últimas semanas, principalmente por profissionais do jornal ‘O Dia’.

Foram vários casos. Vou contar dois. No dia 6 de outubro, uma equipe do jornal foi detida na sede da associação de moradores da favela do Dique por traficantes armados de fuzis. Os jornalistas tentavam ouvir moradores vítimas da guerra entre dois comandos que disputam o controle da favela de Vigário Geral. O motorista da equipe foi obrigado a levar um traficante ferido a bala ao hospital, enquanto repórter e fotógrafo foram mantidos presos como reféns. Só foram liberados quando o carro retornou.

Mas o caso mais revelador das contradições que vivem hoje, no Rio, jornalistas e empresas jornalísticas ocorreu na segunda-feira, 27 de setembro. Uma equipe do ‘Dia’, escalada para fazer uma reportagem sobre a Core (Coordenadoria de Recursos Especiais), grupo de elite da Polícia Civil, foi convidada para um deslocamento de helicóptero. Quando sobrevoava o morro da Providência, no centro da cidade, a aeronave foi atacada por traficantes. Um dos policiais revidou os tiros, e o delegado que acompanhava a equipe pediu reforços. Policiais invadiram o morro, prenderam vários moradores e mataram dois supostos traficantes.

A equipe do ‘Dia’ que estava no helicóptero atacado correu, portanto, um risco sério, e o correto teria sido ser retirada do local. Mas a permanência permitiu ao fotógrafo Carlos Moraes registrar, sem que imediatamente se desse conta, um flagrante importante. Na Redação, ao examinar as fotos que Moraes tirara às cegas, apenas com o braço e a câmara para fora do helicóptero, os jornalistas perceberam que os dois rapazes mortos eram os mesmos que, momentos antes, estavam rendidos e deitados no chão. Tinham sido, portanto, mortos pela polícia depois de dominados.

A reportagem, inicialmente prevista para mostrar um lado positivo da polícia, acabou servindo de base para uma acusação formal contra os policiais: ‘Agentes acusados de execução’ foi uma das manchetes do dia seguinte. Por conta disso, seis policiais foram afastados, incluindo o delegado que dirigia a Core e que estava no helicóptero com os jornalistas.

Esse caso prova a importância da presença da imprensa nas áreas conflagradas. Mas o risco, como vimos, é imenso. O que fazer?

A situação de perigo para os jornalistas não é uma exclusividade do Rio nem da cobertura policial. Em artigo publicado em outro jornal inglês, o ‘Financial Times’, no dia 2, o professor Rob Brown faz um relato das dificuldades que os jornalistas têm para denunciar crimes em países como a Índia, a Colômbia (‘vem sendo há muito o mais mortífero dos países para quem deseja trabalhar como jornalista devido ao flagelo aparentemente insolúvel do narcoterrorismo’) e o Zimbábue. E cita o Brasil de Tim Lopes.

Para Brown, ‘jornalistas dos países em desenvolvimento têm de ser heróis para reportar sobre suas sociedades’.

Não precisamos de heróis, apenas de repórteres que possam testemunhar e escrever sobre o que vêem.’

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‘Depoimentos – Rio e Bagdá’, copyright Folha de S. Paulo, 17/10/04

‘Sérgio Costa, diretor de Redação do ‘Dia’, do Rio:

‘Não acho possível fazer bom jornalismo no Rio virando as costas para as comunidades pobres onde não há presença do Estado e o domínio do crime é evidente. Depois do episódio do helicóptero, nossas equipes nas ruas passaram a ser alvos de piadinhas e indiretas de policiais do tipo: ‘Será que vale a pena morrer por uma reportagem?’. É uma forma de intimidação. Telefonemas de ameaças para a redação também passaram a ser constantes.

O que fizemos? Além de providenciar todo o apoio para a dupla de jornalistas, entramos em contato com o chefe de polícia, Álvaro Lins. A responsabilidade sobre qualquer incidente ficou bem definida para a Secretaria Estadual da Segurança do Rio de Janeiro.

Diante dos últimos fatos combinamos uma série de procedimentos de segurança, que já estavam em prática desde a morte de Tim Lopes e que devemos adotar com mais rigor. Ninguém está proibido de entrar em favela, mas a necessidade de entrar numa área de conflito tem sido avaliada caso a caso e deve prevalecer o bom senso, sempre. E a decisão soberana do jornalista na rua deve ser respaldada pela direção da Redação’.

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Sérgio Dávila é correspondente da Folha na Califórnia e cobriu toda a guerra do Iraque, até a queda de Bagdá:

‘Para a segurança do jornalista, a diferença básica entre a cobertura de uma guerra e uma situação de violência como a que vive o Rio hoje é que numa guerra os ataques são constantes e efetivos. Assim, é lógico que o jornalista corre mais risco numa guerra. Para ser numérico: nos 20 principais dias do conflito no Iraque, entre 20 de março de 2003 (o começo) e 9 de abril de 2003 (queda de Bagdá), dos 150 mil soldados da coalizão envolvidos no combate, menos de 500 morreram (ou 0,3%); dos cerca de mil jornalistas que participaram da cobertura naqueles dias, 16 morreram (ou quase 2%). Proporcionalmente, sete vezes mais.

Acho que a situação do Rio pode ser comparada, sim, embora em menor escala, com a que vivem os jornalistas em Bagdá hoje em dia. Os repórteres viraram declaradamente alvo, tanto de seqüestro quanto de tentativa de assassinato, o que dificulta enormemente o trabalho. Há um e-mail famoso rondado a internet agora, da correspondente do ‘Wall Street Journal’ em Bagdá, em que diz que ela e seus colegas ficam o dia inteiro sentados no lobby do hotel, esperando as autoridades chegarem para dar a entrevista coletiva do dia. Sair às ruas procurando informações exclusivas e independentes tornou-se impossível’.’