‘Não é a primeira vez que agências de publicidade são flagradas em esquemas que podem ser definidos, com boa vontade, como imorais. Em 2003 e 2004, a Folha noticiou o envolvimento de agências regionais na intermediação da compra de reportagens em jornais e revistas locais por dois governos do Paraná (em 1991 e 2002).
A publicação de propaganda oficial paga em formato de reportagem para enganar o leitor é uma prática ignominiosa que afeta, além da população iludida, a credibilidade da imprensa e das agências de publicidade, fora o uso criminoso de dinheiro público.
O esquema descoberto agora em Minas, que envolve as duas maiores agências de propaganda do Estado -a DNA, com 23 anos no mercado, e a SMPB- e várias empresas menores de comunicação, é muito mais grave do que os esquemas do Paraná porque tem uma dimensão nacional, envolve dois poderes (Executivo e Legislativo) e aponta para crimes como caixa dois, lavagem de dinheiro, superfaturamento, corrupção e enriquecimento ilícito.
A primeira reação do setor foi a de se proteger. Repetiu a estratégia do governo e do PT de tentar se dissociar do escândalo, em vez de enfrentá-lo. Um erro. A estratégia defensiva -’não se pode generalizar’, ‘todo setor tem bons e maus’, ‘é um caso isolado’- frustra os que gostariam que o meio publicitário, polêmico pela própria natureza de seu ofício, viesse a público apontar os erros que vêm permitindo tantos desvios e anunciar uma correção de rumo.
Aliás, é até difícil classificar hoje o que vem a ser uma agência de publicidade, tantas são as ‘especializações’ que se confundem e conflitam. Publicidade, propaganda oficial, marketing eleitoral, estratégia de comunicação, comunicação integrada, marketing de relacionamento, marketing promocional, promoção de eventos, administração de crises e por aí vai.
Vários governos passaram a usar as agências para o pagamento de serviços que nada têm a ver com a publicidade. Elas viraram guichê de pagamentos.
O caso do ‘mensalão’ aponta para dois problemas sérios, além dos crimes já mencionados: a promiscuidade gerada pela associação da publicidade com os serviços de campanha eleitoral e o uso abusivo de verbas públicas para a propaganda oficial dos governos federal, estaduais e municipais. Os dois fenômenos se completam.
Não é de hoje que a mistura de publicidade, marketing eleitoral e propaganda política vem afetando a publicidade e a política. O saldo previsível é o aumento da descrença nessas atividades.
A imprensa
Engana-se a imprensa se imagina que passa ao largo do escândalo. Qualquer coisa que afete hoje o mundo das agências de publicidade e das agências de comunicação afeta também jornais, revistas, rádios e TVs. Agora mesmo tivemos um exemplo de como estão umbilicalmente ligados e de como é difícil justificar as práticas que vamos construindo.
Nas investigações policiais do caso Schincariol, um grande publicitário, Luiz Lara, foi flagrado num diálogo telefônico em que sugeria que a cervejaria, com problemas fiscais sérios, poderia comprar uma reportagem de capa da revista ‘IstoÉ Dinheiro’. Ele acenou ainda com a possibilidade de evitar que fossem publicadas reportagens negativas na ‘IstoÉ’ e na ‘Época’.
A agência Lew, Lara é a segunda maior do Brasil em investimentos e tem, entre seus clientes, a Folha e a Presidência da República. O publicitário afirmou que foi uma ‘irresponsabilidade’ ter feito as afirmações gravadas e explicou: ‘Durante a conversa com Adriano Schincariol, reconheço que me excedi inadvertidamente, pois uma agência de publicidade não tem a função nem o poder de interferir no conteúdo editorial dos veículos de comunicação’.
A explicação tem a virtude de revelar, pelas palavras de um grande publicitário, que em algum momento e por alguma razão ele imaginou que tivesse tal função e tal poder.
As revistas envolvidas garantiram que não vendem reportagens, e deve-se acreditar nelas. Mas no Paraná, seis jornais, em 1991, e 68 jornais e seis revistas, em 2002, venderam. E nos dois casos havia agências de publicidade no meio.
Auto-regulação
Não adianta o setor publicitário achar que se sairá bem dessa confusão sem se expor à discussão pública e admitir seus erros. Os organismos que criou de auto-regulação -o Conar (Conselho Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária) e o Cenp (Conselho Executivo das Normas-Padrão)- parecem insuficientes para enfrentar o problema e prestar contas à sociedade.
Isso é ruim para as agências e para os meios de comunicação. Significa que os mecanismos de autocontrole que criaram não garantem a vigência dos códigos de ética com os quais se comprometeram publicamente.
O Cenp foi construído a partir de preceitos que definem o que chama de ‘condutas e regras das melhores práticas éticas e comerciais entre os principais agentes da publicidade brasileira’. A questão é: as empresas de Marcos Valério são uma exceção ou o esquema de uso das agências é mais freqüente do que imaginamos?
O Cenp abriu processos contra as duas agências de Minas e aguarda o desenrolar das investigações parlamentares e policiais para uma sentença. É pouco.
Mais do que se defender, os conselhos e as associações de classe deveriam se preocupar em questionar suas práticas e apontar caminhos para superar a situação promíscua de hoje. Esse tem de ser um processo de reflexão e de debate público, assim como o questionamento do comportamento do governo, dos partidos e dos meios de comunicação tem sido público.’
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‘A explicação da Folha’, copyright Folha de S. Paulo, 31/7/05.
‘A Folha noticiou, na sua edição São Paulo de quarta-feira, a existência de depósitos feitos por quatro empresas jornalísticas em duas contas da DNA, uma das empresas de publicidade de Marcos Valério que estão sendo investigadas pela CPI dos Correios. Um dos depósitos era uma transferência eletrônica da Empresa Folha da Manhã, que edita o jornal, no valor de R$ 223 mil. O texto ‘DNA recebeu de empresas de comunicação’ não explicava a razão do depósito e questionei o jornal na Crítica Interna daquele dia.
‘Por que a Folha não detalhou para os seus leitores a transação comercial que a levou a depositar R$ 223 mil na conta da DNA? O texto (…) é genérico. (…) Perdeu [o jornal] uma ótima oportunidade de se mostrar transparente e de se exigir o mesmo tratamento que está dispensando às outras empresas que tiveram transações comerciais com as agências de publicidade de Marcos Valério, como as telefônicas, instadas a se explicar (…).’
Na quinta-feira, o jornal publicou uma explicação detalhada e convincente na reportagem ‘Órgãos de mídia explicam operações bancárias com a DNA reveladas na CPI’. Segundo o jornal, a DNA fez uma transferência eletrônica para a Folha no dia 21 de novembro de 2003 para pagar a compra de espaço publicitário. Houve um problema na transferência e a devolução do depósito para a conta da agência ficou registrada, equivocadamente, como um crédito. O depósito da DNA foi feito com sucesso no dia 23 e pagou a publicação de três anúncios do Banco do Brasil. Ou seja, não houve depósito da Folha na conta da DNA.
No mesmo dia a Secretaria de Redação informou ao ombudsman que não fôra possível publicar na quarta-feira uma explicação detalhada porque a informação do depósito chegara tarde da noite de terça e não continha as datas dos anúncios. Somente na quarta foi possível localizar as informações, publicadas na quinta.’