Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Marcelo Beraba

‘O Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec) da Universidade Cândido Mendes, do Rio, iniciou um trabalho inédito de análise da cobertura que os jornais fazem de crimes, atos de violência e políticas de segurança pública.

A pesquisa avalia 2.514 textos (reportagens, notas, editoriais e artigos) publicados ao longo de cinco meses de 2004 em três diários de São Paulo (Folha, ‘Estado’ e ‘Agora’), três do Rio (‘O Globo’, ‘JB’ e ‘O Dia’), e três de Belo Horizonte (‘Estado de Minas’, ‘Diário da Tarde’ e ‘Hoje em Dia’).

O trabalho ainda não acabou. O estudo Mídia e Violência encerrou a primeira fase, de classificação dos textos, e inicia agora uma análise dos números que recolheu. Mas há alguns dados disponíveis que devem fazer os jornais pensarem.

1 – Apenas 36,4% dos textos analisados faziam referência a mais de uma fonte de informação.

2 – 32,5% tinham como fonte principal a polícia.

3 – Apenas 10,5% continham diversidade de versões ou de opiniões.

Ou seja, o estudo parcial confirma a extrema dependência que os jornais têm de fontes policiais. É um problema porque raramente são fontes confiáveis.

Irresponsabilidade

Há casos recentes que mostram como a polícia manipula a imprensa e como a imprensa acaba reproduzindo, sem qualquer verificação, acusações precipitadas feitas por autoridades policiais.

Lembro o caso da estudante Luciana de Novaes, atingida por uma bala perdida, em maio de 2003, quando lanchava no campus da Universidade Cândido Mendes, no Rio. A polícia divulgou, no dia e nos dias seguintes, vários nomes de suspeitos. Até um aluno da faculdade foi apontado como responsável pelo tiro.

Outro caso, de novembro de 2003 e também no Rio, foi o assassinato do executivo da Shell Zera Todd Staheli e de sua mulher, Michelle. A polícia, antes de qualquer investigação, jogou no ar várias teorias nunca comprovadas e chegou a apontar uma filha do casal como suspeita.

Isso não ocorre só no Rio. Pressionada pela imprensa em grandes casos, o comportamento irresponsável da polícia se repete no Brasil inteiro.

A dependência exclusiva de fontes policiais é um problema ainda mais sério em cidades onde o tráfico de drogas mantém domínio de territórios. Como a imprensa não pode entrar nesses locais, os crimes que ali ocorrem têm apenas uma versão, a da polícia. Nas vezes em que a imprensa teve condições de ter acesso a outras fontes nem sempre a versão da polícia foi confirmada.

Caso novo

Nada disso é novidade, os jornais têm consciência dessa dependência, reconhecem publicamente os problemas que ela ocasiona, mas continuam dando crédito ilimitado à polícia.

Acabamos de assistir a outro exemplo. O ambientalista Dionísio Júlio Ribeiro foi assassinado no Rio na noite de terça-feira. Na sexta, os jornais deram os nomes de vários suspeitos apontados pela polícia. Um deles foi acusado porque, descobriu-se, era um homicida foragido da Justiça.

O fato de o sujeito ter álibi comprovado não impediu que seu nome e foto saíssem nos jornais. A polícia tinha a obrigação de prendê-lo, por ser um foragido; mas não tinha provas para acusá-lo no caso do ambientalista. A Folha publicou ainda o nome e a história de um pastor protestante que, segundo a polícia, seria outro suspeito.

Na mesma sexta, a polícia anunciou à tarde a prisão do assassino. Não era o foragido nem o pastor. E agora?’

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‘Jornalismo de celebridades’, copyright Folha de S. Paulo, 27/2/05.

‘Não foram muitos, mas alguns leitores reclamaram da cobertura e do espaço que a Folha dedicou ao casamento do jogador Ronaldo com a modelo Daniela Cicarelli no castelo de Chantilly, próximo a Paris, dia 14.

Reproduzo trechos de algumas cartas que sintetizam as reclamações. ‘A cobertura do casamento do Ronaldo foi muito exagerada, parecia ilha de ‘Caras’. Enviar um jornalista para esse tipo de evento é ridículo e descabido.’ Outra: ‘(…) Se essa reportagem tivesse sido publicada em uma revista de entretenimento já seria questionada. Caso estivesse na Ilustrada, não estaria condizente com o Projeto Folha. No caderno de Esportes, ela é uma aberração’.

A Folha exagerou realmente nessa cobertura? Acho que nenhum jornal tem como escapar desse tipo de noticiário. Também não vejo problema em enviar um repórter para fazer o casamento. É melhor do que ficar à mercê das agências. Um bom repórter pode fazer um trabalho diferente. Seria problema gastar dinheiro com uma viagem desta se o jornal não estivesse enviando repórteres para o sul do Pará, por exemplo. Não é o caso.

O problema, na minha opinião, não é cobrir, mas como cobrir. Jornais como a Folha, que se pretendem formadores de opinião mas estão sujeitos às pressões do mercado, ficam perdidos nestas horas. Não podem se render muito à curiosidade dos leitores para não parecerem frívolos; não podem ser críticos demais para não ficarem chatos. Acabam não satisfazendo os que querem fofoca nem os que querem reflexão.

Acho que foi um pouco isso que ocorreu nesta cobertura: um tanto de escândalos e de futilidades, como na reportagem ‘Daniella expulsa ex-rival de casamento’, e outro tanto de reportagens que tentavam entender o fenômeno, como a capa de Ilustrada de 20 de fevereiro, ‘Cenas de um casamento’.

Como transformar essa curiosidade irrefreável pelas celebridades e seus barracos em reportagens inteligentes? Esse é o desafio que jornais como a Folha têm de enfrentar se planejam continuar formadores de opinião.

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‘Reflexão – ‘Sem deslumbramento’’, copyright Folha de S. Paulo, 27/2/05.

Marcelo Coelho é colunista da Folha, membro do seu Conselho Editorial e autor de ‘Gosto se discute’ (Editora Ática):

‘Acho muito difícil, do ponto de vista jornalístico, ignorar o que acontece com as celebridades. Não só porque o leitor estaria em tese interessado no assunto. Acho mais importante o argumento de que o tema celebridades é de fato decisivo em nossa época.

De Lula a Tony Blair, de Berlusconi a Bush a linguagem do poder político se impregnou completamente do imaginário televisivo. Todos esses governantes exercem um papel meio decorativo e não se distinguem dos heróis e vilões das novelas. Diante da plastificação das lideranças políticas, é como se o público sentisse falta de pessoas comuns, que dizem palavrão e armam barracos; volta e meia essas pessoas se elevam à condição de celebridades, graças à beleza ou a algum tipo de talento.

Contrastando com a linguagem falsa das ‘celebridades’ da política, as ‘celebridades’ dos escândalos, dos casamentos milionários e dos esbanjamentos parecem até trazer um componente de verdade humana: mostram os prazeres e as misérias que, talvez, na vida política e empresarial, também existam, mas se ocultam um pouco.

Como a imprensa deve tratar disso? Naturalmente, sem deslumbramento. Mas o que é o contrário do deslumbramento? O cinismo, a desmistificação, a crítica? A meu ver, as próprias celebridades se encarregam disso: sabem, declaram, ostentam a própria banalidade, o próprio cinismo. Não há idealização do que fazem; o espetáculo de esbanjamento que oferecem não surge como ‘nobreza’, ‘sucesso’, ‘excelência’, mas como esbanjamento mesmo.

Acho que muitas vezes a Folha tem acertado na cobertura, quando trata o aspecto comercial, sociológico, desses acontecimentos, sem se deslumbrar nem entrar no jogo do cinismo complacente.

Entre a coluna social, o jornalismo de celebridades e a cobertura da farsa política de Brasília o caminho, a meu ver, é mais convergente do que parece, se soubermos registrá-lo com frieza, o que é diferente do oba-oba, mas também diferente do puro deboche’.’