Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Marcelo Beraba

‘O país vota, daqui a 15 dias, o referendo sobre a comercialização de armas de fogo e munição. As campanhas do sim (favorável ao fim da comercialização) e do não (contra a proibição) estão nas rádios e TVs. Três revistas trouxeram a disputa para as suas capas com pontos de vista distintos.

A ‘Época’, 420 mil exemplares, fez uma apresentação neutra: ‘Armas, entenda antes de votar. O que pode mudar em sua vida com o plebiscito do dia 23’. A ‘Trip’, revista mensal voltada para jovens, 50 mil exemplares, defendeu o sim: ‘Por que você deve optar pelo desarmamento’. E a ‘Veja’, campeã de vendas com 1,1 milhão de exemplares semanais, foi categórica: ‘7 razões para votar Não – A proibição vai desarmar a população e fortalecer o arsenal dos bandidos’.

A cobertura da grande imprensa, incluindo a Folha, é francamente favorável ao sim. A grande surpresa foi a ‘Veja’, e por duas razões: por ter defendido o não, na contramão do posicionamento predominante, e por tê-lo feito por meio de uma reportagem opinativa, como se fosse um editorial, o que contraria os cânones do jornalismo que se pretende ‘imparcial’.

A ‘Veja’ é assim, de opiniões polêmicas, e seus leitores, imagino, estão acostumados com essa linha editorial. A busca da imparcialidade e da objetividade deve ser compromisso permanente da imprensa. O que não significa que os veículos não possam ou não devam se posicionar.

O Tribunal Superior Eleitoral negou, na semana passada, representações contra a circulação da ‘Veja’ e da ‘Trip’ por entender que elas não estão impedidas de assumir posições políticas durante a campanha.

O ideal, acredito, é que cada jornal e revista seja pluralista, que abra espaço para as diferentes posições que disputam a opinião pública. Mas a diversidade deve estar contemplada, principalmente, pelo conjunto da imprensa. É possível? É um objetivo distante enquanto a principal marca do nosso modelo de comunicação for a alta concentração de empresas, de audiência e de publicidade.

De qualquer modo, acho salutar que as revistas tenham posicionamentos distintos sobre o referendo. É um bom sinal, sem entrar no mérito da qualidade das reportagens. São opções jornalísticas e o leitor escolhe. O fundamental é que os jornais e as revistas tornem público seus compromissos editoriais. A isso se chama transparência.

A Folha se declara, no ‘Manual da Redação’ e no Projeto Editorial, comprometida com um jornalismo crítico, pluralista e apartidário, preservado das opiniões da empresa. Consegue? Nem sempre.

No caso do referendo, o jornal é favorável à proibição do comércio de armas. O editorial ‘Contra as armas’ (15/5) defende o sim, embora outro editorial (27/7) tenha alertado que a proibição deve ser vista com cautela, ‘para não alimentar ilusões’. O noticiário se esforça para fazer uma cobertura isenta, que contemple as duas posições em jogo, mas a análise de reportagens recentes mostra que a simpatia pelo sim influencia o resultado final.

O caderno Folhateen, destinado aos jovens, reservou a capa do dia 3 para o referendo. O título foi na linha de prudência do editorial: ‘Adeus às armas?’. E a proposta da reportagem era de orientação: ‘Conheça os argumentos de quem defende e de quem é contra a medida’. Mas as duas páginas internas trouxeram três depoimentos favoráveis ao sim, sendo um deles de uma celebridade, o músico Marcelo Yuka, e apenas um, de um estudante de jornalismo, em defesa do não. Isso é equilíbrio?

No dia 22 de setembro, o jornal publicou uma notícia sobre a morte de um garoto: ‘Jovem de 15 anos pega arma do pai e mata colega de 11 com tiro no Rio’. No pé da pequena nota havia um intertítulo lembrando que no dia 23 vai ser realizado o referendo. Sutil. São escorregões.

A cobertura do referendo coloca a imprensa mais uma vez na berlinda. Há uma expectativa grande de que, mais do que se posicionar, ela possa ajudar o leitor a entender o que está em jogo. Num país como o Brasil, onde o ensino é precário e pouco se lê, onde quase não existem fóruns de análise e de debate, a produção universitária é pequena e mal difundida e onde a publicidade oficial dos governos (todos) é eleitoral, a imprensa passa a ser cobrada por funções que não são só suas.

A frustração é permanente porque ela não consegue dar um tratamento aprofundado para os assuntos mais complicados. Seja por que não está preparada, seja por que é dispersa e sem foco, seja por que não está atenta para os grandes problemas, mas apenas para a sua própria pauta, a verdade é que temas mais complexos são tratados de forma superficial e sem continuidade.

Agora mesmo estamos vendo isso acontecer com o projeto de transposição do rio São Francisco (foi preciso um bispo fazer greve de fome para despertar a imprensa sobre o tamanho dos conflitos que estão em jogo).

No caso do referendo das armas, acho difícil que a imprensa possa ainda trazer alguma racionalidade à discussão. O que vai orientar o voto agora, infelizmente, não é mais o debate nem a informação isenta, mas as propagandas oficiais carregadas de distorções e mistificações.’

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‘Campanha’, copyright Folha de S. Paulo, 9/10/05.

‘‘A Folha realiza campanha em situação especial, quando dirige seus esforços para promover determinada causa que julgue ser do interesse público. Em 1984, por exemplo, a Folha se engajou na campanha pelas eleições diretas para presidente da República. O jornal, porém, obriga-se a publicar pontos de vista contrários às posições que defenda na campanha, mesmo durante seu transcurso. A Folha nunca participa de campanha para enaltecer ou desacreditar pessoas nem serve a interesses particulares de partido político, grupo ou tendência ideológica.’(‘Manual de Redação’, pag 37)’

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‘A posição da ‘Veja’’, copyright Folha de S. Paulo, 9/10/05.

‘As críticas mais contundentes que li a respeito a capa da ‘Veja’ foram feitas pelo jornalista Alberto Dines, do ‘Observatório da Imprensa’. Ele chamou a reportagem de ‘clássico do jornalismo panfletário’.

O diretor de Redação Eurípedes Alcântara explica o posicionamento da revista no caso do referendo. Reproduzo a íntegra do seu raciocínio. Nele está embutida a linha editorial de ‘Veja’.

‘Veja’ não esconde suas posições e não se refugia no comodismo da neutralidade. Essa política editorial não nos exime de mostrar os dois lados de uma questão. Mas para isso é preciso que existam dois lados. No caso do referendo, apesar das pessoas poderem votar sim ou não, a dualidade é ilusória. A questão não está sendo travada entre um grupo de pessoas que espera banir as armas de fogo e outro grupo que luta por sua manutenção, sendo papel da imprensa mostrar, com distanciamento, os argumentos de um lado e de outro, como é sua obrigação, por exemplo, nas eleições majoritárias. A questão proposta pelo referendo é outra -como tentou mostrar a reportagem de ‘Veja’. A questão proposta é se os brasileiros aceitam ter um direito individual suprimido por uma ‘ditadura da maioria’ usando-se para isso um dos instrumentos da democracia direta, a consulta popular. Esse instrumento é válido e tem sido usado amiúde para aferir o desejo das pessoas na Europa e em alguns Estados americanos -mas nunca é usado nas nações republicanas para diminuir o direito dos cidadãos e aumentar os do Estado. As consultas diretas bem-sucedidas visam arbitrar conflitos entre grupos e a chancelar reformas constitucionais. Um referendo que pergunte ao cidadão se ele quer ter direitos básicos suprimidos não deveria ser proposto jamais. Em sendo, merece apenas uma resposta: não’.’