Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Marcelo Beraba

‘A Folha distribuiu nesta semana um comunicado a todos os editores solicitando que preparem uma relação das áreas de cobertura jornalística que consideram mais importantes sob sua responsabilidade. A partir desta definição o jornal pretende compor listas de fontes de informação para cada um dos setores elegidos.

De acordo com o comunicado, assinado pelo secretário de Redação de Produção, Vaguinaldo Marinheiro, um levantamento interno demonstrou que o jornal consulta poucas fontes para a realização de reportagens. ‘Mostrou também que ouvimos sempre as mesmas pessoas’, segundo o texto. ‘A intenção é enriquecer ao máximo essas relações [de fontes] para que possamos diversificar as vozes no jornal.’

A iniciativa é bem-vinda. Em primeiro lugar, porque o jornal tem, entre os seus compromissos editoriais, o pluralismo, assim justificado: ‘Numa sociedade complexa, todo fato se presta a interpretações múltiplas, quando não antagônicas. O leitor da Folha deve ter assegurado seu direito de acesso a todas elas. Todas as tendências ideológicas expressivas da sociedade devem estar representadas no jornal’.

Em segundo lugar, porque o diagnóstico da Secretaria de Redação está certo: é visível a pobreza de fontes a que a imprensa em geral recorre; salta aos olhos a ausência do contraditório nas reportagens; e é desconcertante a repetição dos mesmos ‘especialistas’ de sempre.

O caso etanol

A visita do presidente George W. Bush ajuda a exemplificar o tamanho e a gravidade do problema que a Folha pretende enfrentar. Não tenho condições de analisar a cobertura de ontem e de hoje porque escrevo a coluna na sexta-feira. Mas a análise dos textos publicados de 1º de março até anteontem -o período de preparação e apresentação da viagem- mostra que ela teve alguns poucos focos: as negociações em torno do álcool combustível, a incômoda presença do presidente Hugo Chávez, da Venezuela, a política dos Estados Unidos para a América Latina e as questões relativas a segurança, organização da viagem e transtornos em São Paulo. Esses foram os principais eixos da cobertura.

De 89 textos (reportagens, notas, artigos e editoriais) que analisei, 30 se referiam de alguma maneira ao etanol. Praticamente todos tinham o mesmo ponto de vista, de que o biocombustível será a saída econômica para o Brasil e, quiçá, para a humanidade. Independentemente das divergências com os Estados Unidos em relação à taxação do álcool exportado pelo Brasil, a maioria absoluta dos textos não abriu espaço para os questionamentos de economistas, agricultores e ambientalistas que têm objeções à expansão desmesurada da exploração da cana-de-açúcar para a fabricação do álcool. ‘Há uma euforia no governo’, registrou uma das reportagens da Folha. Pode-se dizer que o ânimo é o mesmo na imprensa.

Encontrei pouquíssimos registros de opiniões divergentes, céticas ou, pelo menos, preocupadas com a tal euforia. A manifestação mais importante virou uma nota insignificante: ‘Para ONU, álcool é ameaça à Amazônia – Achim Steiner, do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, teme que, para suprir a demanda internacional, áreas da floresta sejam usadas para o plantio de cana-de-açúcar’ (6/3).

O colunista Vinicius Torres Freire registrou em dois artigos que ‘a preocupação ambiental cresce’ e deixou as perguntas: ‘Há risco ambiental na expansão da cana? Pior de tudo: o que vai ser dos milhões de empregados e desempregados pelo setor, com o avanço das máquinas de colheita e com a míngua da pequena lavoura?’ Joseph Stiglitz, Prêmio Nobel de Economia, em entrevista ao jornal mencionou que ‘há preocupações entre os ambientalistas de que a demanda por álcool vai fazer aumentar a demanda por terra’ e que ‘como em tudo, quando você resolve um problema, pode criar novo leque de problemas’.

Nem mesmo nos protestos contra a visita de Bush as vozes discordantes puderam se expressar. Há a informação de que várias organizações condenaram as negociações com os EUA em torno do álcool, há as aspas de um bispo dizendo que a perspectiva é ‘sinistra’, mas não há espaço para os argumentos. Em um relato de uma das manifestações, o jornal chega a escrever que ‘eles protestaram contra (…) a cana-de-açúcar’, como se isso tivesse alguma lógica. A impressão que os textos dos jornais passaram foi que se tratava de bandos de malucos radicais.

Outros casos

O problema não é só da Folha. Vários estudos feitos por organizações que observam o trabalho da imprensa registram a nossa miséria. Alguns exemplos. O Cesec (Centro de Estudos de Segurança e Cidadania), da Universidade Candido Mendes, analisou a cobertura de crime e violência em nove jornais de São Paulo, Rio e Minas durante cinco meses de 2004 e concluiu que somente 36,4% dos textos registravam mais de uma fonte, 10,5% continham opiniões divergentes e 32,5% se baseavam apenas na polícia.

Outra pesquisa feita pelo mesmo instituto com oito jornais do Rio em 2006 teve resultado similar: 36,5% dos textos tinham mais de uma fonte e apenas 8,4% continham opiniões divergentes. Mesmo num jornal como ‘O Globo’, com perfil mais próximo da Folha, o resultado deixa a desejar: 47% dos textos analisados tinham só uma fonte e apenas 13,1% traziam opiniões variadas. Em jornais populares, como ‘O Povo’, o índice de reportagens com opiniões divergentes é de 4,6%.

A Andi (Agência de Notícias dos Direitos da Infância) fez 17 pesquisas em jornais desde 2000 para avaliar as coberturas de temas sociais (como drogas, direitos humanos, cidadania, saúde, deficiências físicas, educação) e de outros, como o uso de transgênicos. Uma ponderação das pesquisas resultou que apenas 10,12% dos textos analisados abrigavam opiniões divergentes e 89,88% eram monocórdios. O maior índice encontrado de pluralidade foi na cobertura do uso de transgênicos, que chegou a 36,5%.

Na cobertura sobre drogas, apenas 8,4% dos textos analisados apresentavam para os leitores mais de um ponto de vista. Outro assunto polêmico -políticas públicas de comunicação- tem tratamento semelhante: 84,3% dos textos não exploravam os enfrentamentos que o tema suscita na sociedade.

Pluralismo

Enfim, a iniciativa da Folha de buscar fontes novas e diversificadas para o apoio da Redação é um alento. Fiz questão de fazer o registro para que as instituições, organizações e vozes que hoje não encontram espaço no jornal para opinião ou para a difusão de informações possam se apresentar.

As mensagens dirigidas ao ombudsman com identificação do remetente e dados objetivos sobre especializações ou sobre áreas de atuação serão encaminhadas para a Redação com a esperança de que possam contribuir para a produção de um jornalismo de fato pluralista.’