Se você lesse as duas frases isoladamente, poderia ficar surpreso de elas estarem no mesmo jornal.
Uma delas sugeria uma organização jornalística inflexível, exigindo a última palavra quando é o caso de concordar com pedidos de sigilo por parte do governo. Foi publicada num artigo que questionava se o programa da CIA de ataques com drones (aviões não tripulados) vem sendo adequadamente monitorado pelo Congresso. A matéria citava o nome do idealizador do programa, Michael D’Andrea. “A CIA pediu que o nome do sr. D’Andrea e os nomes de outras importantes autoridades da agência não fossem citados no artigo”, dizia a matéria, “mas o New York Times os publica porque eles têm um papel de liderança em um dos mais significativos programas paramilitares e o papel que têm é do conhecimento de governos estrangeiros e muitos outros.”
A outra frase, pelo contrário, sugeria uma organização jornalística que proporciona uma cobertura anônima das autoridades governamentais, apregoando os méritos de uma guerra subexaminada. Foi publicada num artigo sobre a eficácia do programa de drones, parcialmente baseada em entrevistas com autoridades norte-americanas. Uma delas foi citada, sem identificação: ‘“Basicamente, a al-Qaeda é apenas o que restou da organização que já foi’, disse uma autoridades do contraterrorismo norte-americano, numa afirmação que foi repetida por várias autoridades europeias e paquistanesas.”
Como o Times cobrira as recentes mortes não intencionais de dois reféns ocidentais durante um ataque por um drone, tratava-se de um caso de dupla personalidade.
Deferência desproporcional para com as autoridades
Por vários motivos, a cobertura foi notável por relatar a verdade de uma maneira direta. Uma análise jornalística de primeira página por Scott Shane, por exemplo, incluía este parágrafo inesquecível – não numa citação, mas na própria voz do autor: “Qualquer investigação independente dos ataques constatou que o número de vítimas civis foi maior do que as autoridades governamentais reconhecem. Pouco a pouco, tornou-se evidente que, quando os operadores, no estado de Nevada, disparam seus mísseis contra longínquos territórios tribais do outro lado do mundo, muitas vezes não sabem quem estão matando, mas fazem uma aposta, imperfeita, pelo melhor” (as informações de Shane procedem, em parte, de seu livro, que deverá ser publicado em setembro, sobre o ataque de drones em 2011que matou Anwar al-Awlaki, o imã nascido nos Estados Unidos).
Mas por outro lado, falta à cobertura dos ataques com drones ceticismo em relação às reivindicações pelo governo de mortes sigilosas – algo que critiquei em 2012. Por exemplo, a cobertura de rotina de ataques com drones quase sempre faz referência aos “militantes” que foram mortos. Mas seriam realmente militantes? Ou seriam alguns deles civis, como a avó paquistanesa que foi morta em 2012? As matérias não esclarecem nem dão o contexto que poderia levar os leitores a questionarem as denúncias.
Sarah Knuckey, advogada de direitos humanos da Universidade de Columbia, diz que gosta da cobertura que o Times faz dos drones, mas critica a cobertura dos ataques pelo que considera fora do contexto (as mortes de civis, diz ela, são sempre subestimadas) e pela ausência de ceticismo (as informações do governo são aceitas por seu valor aparente). “Vejo uma deferência desproporcional para com as autoridades governamentais e suas opiniões nessas matérias”, disse-me ela.
E Naureen Shah, uma advogada da Anistia Internacional, pede “um reconhecimento maior e mais consistente das mortes de civis” na cobertura feita pelo Times, embora também elogie algumas matérias recentes, como aquela de Matt Apuzzo e Mark Mazzetti que cita os nomes dos operadores da CIA.
O anonimato concedido seria “subserviência”?
Outros leitores levantaram questões. John Bestic, leitor de Pawleys Island, na Carolina do Sul, opôs-se à decisão de citar o nome de Michael D’Andrea e de outros, chamando-a de “arrogância monumental” e referindo-se à “lamentável ética” dos editores.
O editor-executivo do Times, Dean Baquet, disse que tomou a decisão depois de se aconselhar com uma autoridade da CIA por telefone. “A ideia por trás dessa matéria era sobre responsabilidade, sobre o monitoramento de uma importante operação militar que a CIA vem desenvolvendo”, disse ele. Manter as identidades em sigilo, segundo ele, seria uma contradição em relação ao espírito da matéria e ao esforço do Times no sentido de dar aos cidadãos as informações de que necessitam para “o amplo debate que o presidente vem pedindo”.
Matt Apuzzo disse o seguinte: “Esses são os generais da nossa guerra contra a al-Qaeda, são os caras que tomam as decisões.” Segundo ele, o povo norte-americano merece saber quem conduz essa guerra.
E quanto ao anonimato concedido à autoridade na matéria acima citada, que foi descartada por Glenn Greenwald, fundador da publicação online The Intercept, como “subserviente”? Dean Baquet defendeu-a como necessária, uma vez que ninguém, no governo, pode se manifestar oficialmente sobre um programa confidencial, e acrescentou que era fundamental incluir essa opinião. Baquet disse que as pessoas que criticavam a matéria (e ele não falava especificamente de Greenwald) “querem que nós condenemos o programa dos drones – o que não cabe a nós fazermos”.
Ainda há um longo caminho pela frente
A matéria em questão foi escrita por Declan Walsh, que fez um excelente trabalho cobrindo o Paquistão, inclusive suas regiões tribais, antes de ser expulso do país em 2013, e continuou seu trabalho a partir de Londres. Num e-mail, ele disse: “O objetivo de minha matéria era destacar o prejuízo provocado por vários fatores, inclusive o uso de drones, sobre a capacidade da al-Qaeda operar na região das tribos.”
De acordo com a experiência de Declan Walsh, “os agentes da polícia e do serviço secreto de muitos países – os que conheço melhor são os dos Estados Unidos, da Grã-Bretanha, do Paquistão e do Afeganistão – só falam sobre operações em andamento com base no anonimato. Essa é a única maneira para que se consiga que eles digam alguma coisa útil.” Ele também disse que, neste caso, a citação anônima era apenas um detalhe numa matéria muito mais importante. No entanto, afirmou que o anonimato deveria ser usado com parcimônia, com o que eu concordo.
Infelizmente, o Times está longe da parcimônia quando se trata de conceder o anonimato a fontes governamentais. E, embora defendendo a matéria, Dean Baquet disse: “Recebo queixas sobre o anonimato e acho que exageramos.” No entanto, ele disse que vem aumentando a resistência às solicitações do governo em relação a assuntos de segurança nacional. (Michael Calderone e Jack Goldsmith escreveram sobre isso no Huffington Post e no Lawfare recentemente.)
Dean Baquet disse que as revelações sobre transgressões norte-americanas no relatório do Senado sobre tortura e, antes disso, sobre os abusos em vigilância pela Agência Nacional de Segurança [NSA] ensinaram uma lição ao Times. “Aprendemos os perigos de não monitorar e vigiar as guerras” da maneira mais rigorosa possível, assim como concordar prontamente com pedidos do governo para não divulgar informações. “Nós éramos muito bobos, alguns anos atrás – pelo menos, eu era”, afirmou Baquet.
Embora um pouco atrasado, é alentador ouvir isso. Há muito a elogiar na recente cobertura que o Times fez da guerra secreta norte-americana. Mas em termos de um ceticismo sólido, de um contexto e da citação dos nomes dos responsáveis ainda há um longo caminho pela frente.
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Margaret Sullivan é ombudsman do New York Times