A chegada de uma pequena caixa de papelão com a edição de domingo do New York Times, representou, de certa forma, um choque de culturas. Tratava-se de um exemplo de jornalismo inovador – prometendo, nada menos que a realidade virtual – que fora entregue em mãos, à maneira antiga, com o jornal impresso. A caixa propriamente dita (depois de armada, parecia um contêiner da Fresh Direct [uma mercearia online que funciona na região de Nova York] para três ovos gigantes) impressionou-me como se fosse um anacronismo quase instantâneo: pronta para ocupar seu espaço numa timeline histórica da evolução da era digital. Foi isso que aconteceu em 2015.
A caixa parecia destinada a ser lembrada com uma gargalhada incrédula, como se fosse o caso de fones móveis do tamanho de sapatos numa reprise do seriado Seinfeld.
No momento, porém, isto é novidade. O Times pulou para essa tecnologia com estardalhaço e ganhou aplausos. Os óculos que vinham na caixa, quando incorporados a um aplicativo de download num smartphone, dão aos espectadores um mergulho de 360 graus num filme de 11 minutos chamado The Displaced, as histórias de três crianças – do Líbano, da Ucrânia e do Sudão do Sul – arrancadas de suas casas pela guerra.
Muitos leitores do Times ficaram emocionados com a experiência e enviaram mensagens de parabéns. Clare Erlander, de Carlsbad, na Califórnia, escreveu agradecendo ao Times pelos óculos de realidade virtual e pelo filme, chamando-os de “experiência fascinante”.
Rick Broida descreveu sua reação na revista Fortune: “Com cinco segundos do filme, fiquei emocionado pela urgência – e intimidade – das imagens. Não se trata de rostos e paisagens criados por computador; são pessoais reais em lugares concretos e eu me senti como se eu próprio estivesse ali, e não observando de longe.”
“Tivemos que nos esconder”
Mas nem todo mundo gostou. Bob Basofin escreveu dizendo que não compreendia a tecnologia e ficara desconcertado com as instruções. Seu conselho ao Times: “Fiquem apenas no impresso.” (O cavalo do filme, no entanto, está fora de seu estábulo impresso em 3D.) Robert Kaiser, ex-secretário de redação do Washington Post, escreveu-me com uma queixa mais forte, baseada num artigo que apresentava o projeto de Jake Silverstein, editor do Times Magazine, que também ajudou a orientá-lo. O Times, escreveu Kaiser, parece estar apregoando um processo “que muitas vezes se baseará em truques e decepções por parte de fotógrafos/cinegrafistas”. A carta de Jake Silverstein, destacou Kaiser, descrevia como funciona o cinegrafista de realidade virtual para garantir que “a ação transcorre da maneira que ele a imaginou”. Silverstein respondeu que “normalmente, a realidade virtual envolve uma coordenação entre o cinegrafista e o tema maior do que aquela que ocorre no jornalismo de vídeo tradicional”. E disse que pode ser pedido a “um participante para repetir uma ação, ou esperar até que o cinegrafista saia de cena parta terminar juma tarefa”. Isso, disse Robert Kaiser, equivale a falsificar uma cena – e não é um jornalismo sadio.
Michael Oreskes, responsável pelo noticiário da National Public Radio [NPR] e ex-editor do Times, escreveu uma nota de advertência a sua equipe sobre o projeto. Pedi-lhe que me enviasse o comunicado, que inclui um elogio à experiência e também preocupação: “Nossas matérias não podem ser virtualmente verdadeiras. Têm que ser inteiramente concretas.”
Muito antes da experiência do Times, Tom Kent, responsável pelos padrões de ética da Associated Press, escreveu no site Medium que a conexão entre jornalismo e a tecnologia da realidade virtual significa trabalhar através dos desafios: “A compreensão comum de quais técnicas são eticamente aceitáveis e o que precisa ser divulgado junto aos espectadores contribuirá muito no sentido de preservar o futuro da realidade virtual como uma ferramenta jornalística legítima.”
Conversei com Jake Silverstein e outras pessoas no Times sobre estas preocupações e eles deixaram claro que as levam a sério. “Existe uma porção de considerações e questões éticas que têm que ser enfrentadas”, disse Silverstein, e o Times o vem fazendo. Tanto ele quanto aqueles envolvidos com a produção do filme conversaram longamente com o editor responsável pelos padrões éticos, Philip B. Corbett, entre outros, e percorreram o filme pormenorizadamente para garantir que ele representava corretamente a realidade. E a carta do editor pretendia ter o objetivo de ser o mais transparente possível com os leitores sobre o processo. “Uma vez que a realidade virtual filma uma cena em 360 graus, em todas as direções simultaneamente, não há lugar em que o fotógrafo ou o cinegrafista possam ficar, a menos que sejam personagens constantes da cena. Nas fotos ou vídeos tradicionais, eles ficam atrás da câmera e, assim, não parecem estar presentes.” Portanto, disse Silverstein, “tivemos que nos esconder”.
As novas considerações de ordem ética
Philip Corbett disse-me que “seria uma loucura pensar que todas as consequências, questões e temas foram resolvidos e determinados, ou que contamos com um conjunto de regras totalmente estabelecido”. Afinal, disse ele, “foram necessárias décadas para desenvolver um conjunto de práticas satisfatórias na fotografia jornalística”.
E tanto ele quanto Jake Silverstein frisaram que alguns tipos de fotografia e vídeografia amplamente aceitos usam técnicas que não são estritamente autênticas. Por exemplo, um vídeo B-roll [metragem alternativa intercalada com a parte principal] pode mostrar o diretor de uma escola caminhando pelo saguão do prédio numa cena que pode ter sido gravada em outro local. Assim como um fotógrafo preparando-se para registrar o retrato de uma apresentadora pode pedir-lhe que fique mais perto de uma janela, num tipo específico de luz.
Nada disto tem o objetivo de enganar o espectador. Considerações semelhantes ocorrem com a realidade virtual, disse Philip Corbett. Mas às vezes, disse ele, a produção da cena fica muito artificial – uma sequência do vídeo The Displaced foi removida porque “o fotógrafo exagerou ao preparar as coisas”.
O Times vem avaliando como irá tratar da divulgação do processo em futuros filmes – por exemplo, irá aparecer uma descrição das técnicas utilizadas em cada pre-roll [a forma mais comum de publicidade online]? A transparência não pode resolver todos os problemas, mas é uma necessidade absoluta no ponto em que nos encontramos. Assim como é necessário reconhecer que a realidade virtual não é adequada para determinados objetivos jornalísticos.
Se o Times vai ajudar a abrir caminho para o uso desta nova tecnologia, deveria fazer o mesmo para enfrentar as novas considerações de ordem ética.
Pode-se chamar isso pensar do lado de fora da caixa de papelão.
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Margaret Sullivan é ombudsman do New York Times