Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Margareth Sullivan

Esta é a primeira de duas partes da coluna que explora a situação ameaçadora em que se encontra a reportagem investigativa local.

No recém-lançado filme Spotlight, uma repórter investigativa do jornal The Boston Globe, Sacha Pfeiffer, trabalha como uma escrava. Recebe batidas de porta na cara, em bairros operários, adula suas fontes em cafeterias e se debruça minuciosamente sobre catálogos telefônicos até chegar a hora da biblioteca apagar as luzes.

Seus colegas na equipe investigativa do Globe, conhecida como Spotlight, também trabalham por longas horas. O repórter Michael Rezendes (interpretado com um brio maníaco e nervoso por Mark Ruffalo) percorre tribunais e escritórios de advocacia desenterrando informações por absoluta persistência.

O filme conta a história daquilo que a equipe Spotlight desencavou: que um número alarmante de padres católicos – em Boston e também para além de Boston – tinha abusado sexualmente de crianças e que esses padres eram sistematicamente protegidos pelas altas esferas da igreja. A investigação do Globe, que começara em 2001, já durava vários meses antes que uma única palavra fosse publicada. Acabou ganhando um prêmio Pulitzer por serviço público – e mudando o mundo.

O filme é muito forte e comovente. E levanta questões perturbadoras sobre o estado em que se encontra a reportagem investigativa local, tanto hoje quanto no futuro.

Há várias décadas que a reportagem investigativa local é feita, em grande parte, por jornais regionais, como o Globe. Com equipes consideravelmente grandes – às vezes, várias centenas de jornalistas –, os jornais conseguiam fazer o trabalho cuidadoso, demorado e muitas vezes ingrato que pode levar a matérias de importância maior.

Times aumentou compromisso com jornalismo investigativo

Atualmente, entretanto, com os lucros dos jornais sendo seriamente atingidos pelo rápido declínio da publicidade nos impressos e com as equipes das redações murchas devido às infindáveis rodadas de demissões para cortar custos, a reportagem investigativa local vem sendo ameaçada.

O diretor de Spotlight, Tom McCarthy, falou sobre isso recentemente. O filme – que ele escreveu com Josh Singer – vem recebendo resenhas delirantes e já se fala em Oscars. Mas para os leitores de jornal pelo país afora, o futuro não parece tão promissor. “Não tenho certeza se quem for ver o filme diga: ‘Puxa, isso já quase nem existe.’ Não vão saber que é tarde demais”, disse McCarthy à revista Variety em setembro. “As calotas de gelo derreteram. E esses jornais acabaram, foram dizimados.”

Dean Baquet, editor-executivo do Times (e também, ele próprio, um repórter investigativo e vencedor de um prêmio Pulitzer) disse-me que cidades como a sua, Nova Orleans, e outras em que passou parte de sua carreira, como Chicago e Los Angeles, vêm sofrendo com os golpes sofridos pelos jornais locais. “Quando participo da avaliação de concursos, vejo trabalhos realmente muito bons, mas atualmente em número bastante menor”, disse ele. “Preocupo-me bastante com o declínio das coberturas implacáveis e sem concessões, mas com uma missão de servir o público.”

O Times, que manteve uma equipe bastante grande, aumentou seu compromisso com o jornalismo investigativo em todas as editorias, inclusive na de Cidade, segundo Dean Baquet. As investigações sobre abusos na penitenciária em Rikers Island, sobre os centros de atendimento a dependentes químicos e sobre a interferência do governo [estadual] de Andrew Cuomo na Comissão Moreland de anticorrupção partiram todas da equipe local.

Os testes para proteger recém-nascidos

E, embora as perspectivas financeiras do Times estejam longe de estar garantidas, há bons motivos para esperar que o jornal continue sendo vibrante. Mas isso está longe de ser verdade para a maioria dos jornais do país.

Segundo a Sociedade Americana de Editores de Jornais, de 2003 para cá as redações diminuíram 40%. Para falar cruamente, dois de cada cinco repórteres desapareceram, deixando ociosas as rondas de reportagem e encontros públicos sem cobertura. E, segundo o Centro de Pesquisa Pew, o número de repórteres cobrindo as assembleias legislativas teve uma queda ainda mais drástica.

Prever uma guinada no destino dos jornais é uma aposta perdida. (Alguns jornais, no entanto, conseguiram manter suas equipes investigativas e, uns poucos casos, até as aumentaram.)

Martin Baron – que incentivou, e muito, a investigação da igreja desde seu primeiro dia como editor-chefe do Globe e atualmente é o editor-executivo do Washington Post, fica angustiado com o futuro da reportagem investigativa local. “É motivo de uma grande preocupação”, disse-me ele. Até o momento, o jornalismo investigativo no plano local não morreu. “Ainda há uma quantidade razoável. Um bom trabalho ainda é feito. Mas os recursos diminuíram e a vontade de fazer esse trabalho talvez tenha sido atrofiada.”

A pressão do orçamento é apenas um fator. O trabalho investigativo “é considerado algo como um luxo que pode afastar seus leitores, ou seus anunciantes”, disse Baron. “E não parece ser digital, nem cria necessariamente o tráfego” para as plataformas digitais do jornal.

Se o jornalismo investigativo regional realmente morrer, a perda será grande. No jornal Sentinel, de Milwaukee, a equipe “Watchdog” [cão de guarda], criada por Martin Kaiser, editor-chefe durante muitos anos que se afastou do cargo no início de 2015, produzia um projeto magnífico após outro. Em 2013, por exemplo, o jornal revelou que os testes de sangue para proteger recém-nascidos de doenças genéticas sérias eram processados tão lentamente, devido à inépcia burocrática, que os bebês sofriam danos cerebrais, ou mesmo morriam. “Isso poderia ter sido uma simples matéria, do tipo ele disse/ela disse”, disse Martin Kaiser. Mas o jornal juntou um banco de dados com quase três milhões de testes de proteção de recém-nascidos em 31 estados. A investigação ganhou prêmios; e, o que é mais importante, trouxe uma reforma – e salvou vidas.

Quem vai prestar contas?”

Sandra Mims Rowe, editora-chefe do Oregonion, em Portland, durante os anos em que o jornal se tornou conhecido por seu trabalho investigativo, disse-me que ainda encontra boas matérias desenterradas por jornais regionais. Porém, disse ela, menos ambiciosas que a investigação que seu jornal fez sobre os sistemáticos abusos cometidos contra cidadãos estrangeiros pelo Serviço de Imigração e Naturalização, um projeto que ganhou o prêmio Pulitzer de 2001 para serviço público. “Detectar uma coisa no plano local e ter a sofisticação e o nível de talento para executá-la de maneira a que tenha um impacto nacional… Hoje em dia, não vejo muito desses talentos no plano regional”, disse Sandra Mims Rowe, que atualmente é presidente do Comitê para a Proteção dos Jornalistas.

É claro que os jornais locais não são os únicos lugares em que se faz jornalismo investigativo. Organização de mídia sem fins lucrativos, start-ups digitais, centros com sede em universidades e emissoras públicas de rádio vêm preenchendo, cada vez mais, essa lacuna – às vezes, em parcerias. Mas provavelmente não se enraizarão, uma vez que os jornais, mesmo nas atuais condições, permanecem sendo a mídia dominante nos mercados locais. E muitas pessoas com longos anos de jornalismo perguntam-se se irão conseguir oferecer a mesma profundidade e fôlego que tinham as equipes dos melhores jornais.

Paralelamente, não é pouco o mau comportamento que precisa ser exposto. Escrevendo no Washington Post, Nicholas Kusnetz, do Center for Public Integrity, resumiu um novo estudo: “De um lado a outro do país, legisladores estaduais e autoridades de primeiro escalão operam com evidentes conflitos de interesse e se envolvem em relações descaradamente íntimas com lobistas.” Governos, negócios – e, sim, organizações religiosas – que operam em sigilo e sem qualquer controle podem estar gerando uma área para a corrupção.

Nas duas vezes que eu vi Spotlight, ouvi gemidos na plateia durante os fotogramas finais: a longa lista de cidades, em quase todos os cantos dos Estados Unidos e do mundo, em que padres abusaram sexualmente de crianças. Tomar conhecimento disso é de arrepiar, mas pelo menos deixou de ser escondido. À luz do dia, há uma enorme diferença.

É evidente que não se pode permitir que o jornalismo investigativo morra – mesmo com a luta pela sobrevivência dos jornais locais. É uma missão demasiado importante.

Mas Martin Kaiser, o ex-editor do jornal de Milwaukee, coloca o problema sucintamente: “E quem vai prestar contas às pessoas?” Tentarei dar algumas possíveis respostas a essa pergunta na semana que vem.

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Margaret Sullivan é ombudsman do New York Times