Kelly Vaughan, uma leitora do Times que mora no bairro do Brooklyn, em Nova York, passou um ano em Istambul e, consequentemente, acompanhou com grande interesse a cobertura feita da violência na Turquia. Ela escreveu-me na semana passada, depois dos atentados em Bruxelas, com uma preocupação: “Não posso deixar de me perguntar por que é que o Times dá o nome às pessoas que foram vítimas dos atentados de Bruxelas – inclusive, com o perfil de, pelo menos, algumas delas – e o mesmo não foi feito (que eu saiba) em relação às vítimas em Ancara e Istambul”, escreveu. Isso também ocorre, disse ela, “em relação a outras cidades”, seja “a violência no Líbano, no Mali ou no Quênia”.
Kelly Vaughan disse que conseguia imaginar uma porção de motivos para tal disparidade, “alguns dos quais parecem mais legítimos do que outros”. E perguntou “como decide o Times cobrir estas tragédias semelhantes e maneiras tão diferentes”.
Muitos outros leitores levantaram preocupações semelhantes. Richard Greenberg, também de Nova York, escreveu: “Por que é que o NYT dedicou uma cobertura com destaque tão menor ao atentado terrorista da semana passada que deixou 16 pessoas mortas na Costa do Marfim – tanto africanas quanto europeias?” E Theodore Glasser, professor de Comunicação na Universidade de Stanford, resumiu: “Estado Islâmico mata mais de 30 em Bruxelas: grande matéria, primeira página. Estado Islâmico mata mais de 30 em Bagdá: matéria sem importância, página 6, abaixo da dobra do jornal. O que nos diz isso sobre parcialidades de redação?”
No Twitter, Krishnan Viswanathan escreveu (e estou traduzindo de seu twitês abreviado): “As vítimas ocidentais do terrorismo são humanizadas com perfis individuais, mas não o são as vítimas da Ásia/África. Por que? Localização de recursos?”
“Existe sempre um custo humano”
Fiz a mesma pergunta no ano passado, numa coluna em que comparava a cobertura do Times dos atentados em Paris com a cobertura de um atentado terrorista na Nigéria. E o próprio Times explorou mais de uma vez o assunto da atenção desigual por parte da mídia às vítimas do terrorismo.
Em novembro do ano passado, Anne Barnard, chefe da filial de Beirute do Times, escreveu um texto perspicaz com o título “Beirute, também o local de atentados mortais, se sente esquecida”.
Anne Barnard relatava que muitos libaneses se sentiam profundamente ofendidos com a diferença pela qual o mundo reagiu ao duplo atentado suicida em Beirute, que matou mais de 40 pessoas, e aos atentados de Paris, no dia seguinte: “A insinuação, motivo da reclamação de inúmeros comentaristas libaneses, era de que a vida de pessoas árabes tinha importância menor. Ou isso, ou que seu país – relativamente calmo, apesar da guerra vizinha – era considerado um lugar onde a carnificina é a regra, uma esquina qualquer de uma região sem esperança.” (Esse texto, disse-me Anne Barnard na semana passada, “teve uma repercussão maior do que qualquer outra coisa que eu tivesse escrito”. Ela acredita que o texto revelou “as incríveis e inexploradas possibilidades de leitura” naquele país – pessoas que querem ver a si próprias e às suas vidas refletidas e levadas a sério pelos meios de comunicação ocidentais.)
E, no mês passado, o Times produziu um vídeo com o título “As vítimas esquecidas do terror” que perguntava, por exemplo, por que é que o governo dos Estados Unidos hasteou uma bandeira a meio pau após os atentados de Bruxelas, mas não depois de atentados semelhantes na Turquia, na Costa do Marfim e em outros países.
E o Times contaria sempre as histórias das vítimas de terroristas com absoluta equidade? Eu acho que não. E é o que também acha o subeditor de política internacional, Michael Slackman, que me disse numa entrevista na semana passada que esse é um objetivo pelo qual o Times vem lutando, mas nem sempre o consegue. “Precisamos melhorar no sentido de não permitir que nos sintamos insensíveis diante do número de pessoas mortas durante atentados terroristas”, disse Slackman. “Existe sempre um custo humano e esse custo é o mesmo aconteça onde acontecer.”
A cobertura das tragédias humanas
Michael Slackman disse que uma das principais editoras do Times, Susan Chira, ex-correspondente no exterior e também editora de política externa, está “sempre nos pressionando” para contar as histórias das vítimas onde quer que seja. E, acrescentou, os correspondentes no exterior tornaram o trabalho de suas vidas (muitas vezes difícil) “testemunhar” e contar a história humana. Ele destacou que o Times fez isso de maneira admirável na cobertura do vírus Ebola.
Então, por que a persistente desigualdade corretamente observada pelos leitores? Parte da resposta é o acesso. É muito mais fácil deslocar um grande número de membros da equipe para Paris ou Bruxelas do que, por exemplo, para o Paquistão – país que expulsou em 2013 o correspondente do Times, Declan Walsh. (Bruxelas, a capital da União Europeia, já está repleta de jornalistas internacionais.)
Outro fator é o deslocamento de recursos: o Times tem mais de uma dúzia de correspondentes trabalhando em filiais na Europa ocidental; muito menos, por exemplo, são as que existem na África.
E há uma questão legítima de noticiabilidade. A notícia, por definição, é algo fora do comum. Mas em alguns lugares, como o Iraque, o trágico tornou-se o lugar-comum. “Infelizmente, o terrorismo vem se tornando menos imprevisível”, disse Michael Slackman, que já foi correspondente do Times no Egito. Há não muitos anos, disse ele, um atentado à bomba no Cairo teria sido “um choque – e teria tido cobertura”. Isso já não é assim. “Não temos como cobrir todos os atentados naquela cidade.”
Além disso, o relacionamento entre os Estados Unidos e o país onde um atentado acontece também é um fator. Afinal, a França é um dos principais aliados norte-americanos e, portanto, o que acontece ali representa um peso considerável. E, como disse Anne Barnard, os atentados de Bruxelas, depois dos atentados de Paris, obrigam a pensar “se isso passa a ser o normal na Europa”.
Todos esses elementos – o acesso jornalístico, o deslocamento de recursos e a ideia subjetiva do que é noticiabilidade – são muito concretos. Mas com um pequeno exame de consciência os editores podem produzir uma nova abordagem, mais imparcial, para a cobertura de um problema que, infelizmente, não vai desaparecer.
À medida que o Times se torna mais global em seu alcance e suas ambições, a questão de como cobre as tragédias humanas pelo mundo afora irá ganhar maior importância. E enfrentar suas próprias parcialidades culturais irá se tornar não apenas um imperativo jornalístico, mas também indispensável aos negócios.
Gostei de saber que os jornalistas do Times reconhecem a necessidade de refletir sobre a importância de todas as vidas que se perdem para o terrorismo – seja num lugar que nós, norte-americanos, já fizemos turismo, ou num que provavelmente nunca visitaremos. Pouco importando se as vítimas se parecem “conosco”. Porque, ne realidade, se parecem. E faz parte da missão jornalística do Times ajudar seus leitores não só a compreenderem isso intelectualmente, mas a senti-lo em seus corações.
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Margaret Sullivan é ombudsman do New York Times