Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Margareth Sullivan

O contexto não é tudo, mas é importante.

Veja, por exemplo, um trecho de um perfil do ator Taye Diggs publicado numa edição online de uma revista e que irá ao ar na edição impressa de domingo [26/7]. Escrevendo sobre o ator que assumiu o papel principal da peça Hedwig and the Angry Inch esta semana, o escritor e artista James Hannaham descreveu-o da seguinte forma:

“Até hoje, Diggs sempre foi o tipo de símbolo sexual com quem você se poderia casar. Ele desempenha papéis de camaradas equilibrados, inteligentes e sadios, como o simpático médico Sam Bennett em Grey’s Anatomy, ou seu subproduto Private Practice, ou o romancista azarado Harper Stewart da popular e lucrativa comédia de luxo The Best Man (1999) e suas suítes. Os papéis desempenhados por Diggs não são de bobos irritantemente saudáveis, ou de imbecis demasiadamente ambiciosos ou de garotos caprichosos e mal comportados, mas poderiam ser de pessoas da família. Se você fica babando quando ouve a frase ‘homens negros com bons empregos’, então Taye Diggs é o cara.”

É essa última frase, em especial, que vem irritando alguns leitores que já leram o artigo na edição online.

Nos comentários sobre a matéria propriamente dita e em e-mails que me mandaram, alguns leitores acharam o texto (também em outros trechos do artigo) ofensivo e inadequado.

“A piada mesquinha minimiza o que seria um artigo positivo”

C.M. Lewis pediu-me para ver os comentários: “Os leitores têm razão em estar indignados e seus editores têm que dar muitas explicações (para não falar do autor do texto).” O autor de um comentário, por exemplo, escreveu: “É muito ofensivo e em vários níveis. O fato do artigo ter sido aprovado para publicação no jornal é preocupante – isso significa que um bom número de pessoas, no Times, parece pensar que se você escrever exaltando, de uma maneira doentia, um espetáculo com um ator negro e atraente, então qualquer coisa que você diga é aceitável.”

O leitor Anthony Glover mandou-me um e-mail com uma reflexão particularmente cuidadosa. Dizia que o artigo podia ter sido escrito sem “esta tentativa desastrada de humor”.

“Para um homem negro, como eu, foi uma coisa leviana, indigna de ser publicada no Times e, digamos, ofensiva. Também sou gay e faço parte de um grupo gay multirracial chamado Homens de todas as cores juntos/Nova York [Men of All Colors Together/New York]. O grupo foi fundado em 1980, com base no pressuposto de que os relacionamentos inter-raciais precisavam ser comemorados e uma das coisas que sempre examinamos e desafiamos é a interseção de estereótipos e desejo.

O comentário leviano sobre homens negros com bons empregos serem sexualmente desejáveis levou-me a refletir sobre conversas que tivemos em nosso grupo sobre o que estimula o desejo, sobre o que acontece quando isso se cruza com fetiches, principalmente aqueles que se baseiam em estereótipos.

Não foi uma discussão fácil, já que a maioria do grupo abrange os relacionamentos entre negros e brancos. O que descobrimos foi que criava uma dissonância para o homem desejado – de que um relacionamento, muitas vezes baseado no amor, tinha um componente que envolvia o desejo baseado num estereótipo, ainda que este fosse aparentemente positivo.

Desejar um homem por ele ter um bom emprego era diferente de um homem branco desejar um homem negro porque ele tinha um emprego. Nós nos tornamos menos uma pessoa e mais uma coisa – não menos que uma coisa que se fundamenta parcialmente em alguém que baseia o desejo numa circunstância de emprego, que muitas vezes se baseia quase exclusivamente na raça.

Embora os editores devam dar a seus leitores margem de manobra, os editores do Times deveriam desafiar seus jornalistas a tomarem cuidado com o uso de estereótipos, principalmente tendo humor como objetivo. Neste caso, a piada mesquinha e ofensiva minimiza, ironicamente, aquilo que aparentemente seria um artigo positivo sobre Taye Diggs ter assumido um papel que desafia os estereótipos.”

Até agora, é só um sopro de poeira

Perguntei ao editor da revista, Jake Silverstein, se os editores haviam levado em consideração a possibilidade de suprimir aquela frase. Ele disse que a questão fora discutida internamente e com o autor do texto.

“James [Hannaham] manifestou a convicção de que queria manter a frase e eu acho que foi acertado. É claro que é um estereótipo, mas é justamente essa a questão. James é um homem negro escrevendo ironicamente sobre as expectativas dos homens negros e os papéis dos atores negros muitas vezes se restringem a como eles são representados na cultura popular. Isso tem sido uma constante em sua ficção (como disse a revista Entertainment Weekly sobre seu excelente livro Delicious Foods, ‘Hannaham faz uma sátira dos estereótipos raciais com humor negro’), assim como em suas anteriores críticas de teatro, principalmente para o Village Voice. Nesse contexto, acho que a frase é provocativa, mas inteiramente aceitável; é parte da prosa inteligente, sofisticada e divertida com que James nos vem brindando há anos, sobre como as pessoas afro-americanas e as pessoas gay são representadas na cultura popular.”

Em várias ocasiões, os leitores do Times opuseram-se energicamente à qualificação e enquadramento de matérias que lhes parecem deixar transparecer estereótipos de raça ou de gênero. E embora as matérias não devam ser editadas para evitar ofender alguém – caso em que se seguiria o reducionismo – os editores têm, sim, que levar em consideração a maneira pela qual os leitores podem reagir.

As próprias questões da desigualdade econômica e da luta racial em nossa sociedade nada têm de divertido. Mas também é verdade que a maioria dos temas delicados é aquela muitas vezes abordada pelos comediantes (com ou sem sucesso). Me ocorre, por exemplo, Trevor Noah [comediante negro, nascido na África do Sul].

O fato de o autor ser um homem negro que frequentemente aborda esses assuntos – tanto em ficção, quanto na crítica – tem um peso, aqui. E a matéria não é frívola. Na realidade, parece ter plena consciência do caminho para onde vai.

As matérias publicadas na revista [Times Magazine] muitas vezes têm maior repercussão e são mais opinativas do que aquelas publicadas em outras seções do jornal. Se Andrew Ross Sorkin tivesse escrito essa frase em sua coluna DealBook, ou se a frase surgisse numa coluna de cobertura de moda por Vanessa Friedman (coisa bastante improvável, em ambos os casos), teria sido uma confusão inimaginável.

Considerando a legítima delicadeza em torno dessa questão, e a possibilidade muito concreta de que a intenção fosse mal interpretada por muitos leitores, talvez o mais recomendável fosse suprimir a frase. Até agora, entretanto, só vem provocando um sopro de poeira, e não uma tempestade ou um tufão. E em grande parte devido ao texto.

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Margaret Sullivan é ombudsman do New York Times